Um mês da guerra na Ucrânia: Conflito deve levar a rearmamento da Europa e afastá-la da Rússia

Em escala global, o conflito trouxe de volta a tensão entre potências nucleares como os Estados Unidos e a Rússia

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Por Carolina Marins
10 min de leitura

A invasão da Ucrânia pela Rússia completa um mês nesta quinta-feira, 24, com mudanças na ordem política mundial inéditas desde o 11 de setembro. O principal impacto é na Europa, que já avalia se rearmar diante de uma Rússia agressiva a leste. O conflito deve ainda afastar a União Europeia, principal cliente do gás russos, dos laços comerciais construídos com o Kremlin desde a queda da União Soviética.

Em escala global, o conflito trouxe de volta a tensão entre potências nucleares como os Estados Unidos e a Rússia.

Além disso, a imposição de sanções econômicas devem afetar a economia global, cada vez mais integrada e dependente de commodities energéticas e agrícolas russas e ucranianas.


Bombardeio russo a shopping de Kiev, que deixou ao menos oito mortos  Foto: Atef Safadi/ Efe

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A guerra de volta ao coração da Europa

Apesar de a escalada ter se desenhado por meses, poucos analistas acreditavam que Vladimir Putin de fato invadiria outra nação soberana. Porém, na manhã do dia 24 de fevereiro (ainda madrugada no Brasil), as tropas russas entraram na Ucrânia por todos os lados. Embora seja difícil prever com exatidão a estratégia militar Putin, analistas acreditam que sua intenção era tomar a capital Kiev por meio de um movimento de pinça pelo norte.

No front, o resumo deste mês de conflito inclui vitórias militares russas principalmente na costa do Mar Negro, onde, a partir da Crimeia, anexada em 2014, tropas de Putin estenderam seu domínio do Mar de Azov às portas de Odessa, um dos principais portos ucranianos.

Uma forte resistência militar e civil ucraniana, no entanto, tem evitado que a Rússia tome Kiev e outras cidades importantes como Kharkiv e Mariupol, esta última vítima de um cerco feroz de tropas do Kremlin. Nos últimos dias, a Rússia tem ampliado os bombardeios contra alvos civis, sem conquistar avanços relevantes por terra e ar.

O rearmamento europeu

“A sensação de segurança dos europeus mudou e agora isso vai reorientar toda a política europeia para os próximos anos”, explica o professor de Relações Internacionais da FAAP, Carlos Gustavo Poggio. “Nós devemos esperar que os europeus comecem a investir mais em defesa e em armamentos. E já estamos vendo isso acontecer na Alemanha”.

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“Independente agora do que acontece com a Ucrânia, já mudou a sensação de segurança. É como se quisessem reconstruir as torres gêmeas e achar que nada aconteceu no dia 11 de setembro. Permanece as consequências do ato”, completa.

Para Oliver Stuenkel, professor do curso de relações internacionais da FGV, a mudança política da guerra na Ucrânia será ainda maior do que ocorreu após o 11 de setembro. “Naquela época foi uma grande potência que acabou priorizando uma questão que daqui 50 anos será vista como secundária, que foi a Guerra ao Terror. Ela levou os EUA a atacarem dois países menores, mas não gerou uma mudança de época”, explica.

“Enquanto o conflito que a gente está vendo agora afeta profundamente a relação entre pelo menos duas grandes potências que é a Rússia e os EUA, além da Europa se afastando da Rússia. É um grande choque de desglobalização que terá, em termos de vidas afetadas, um impacto muito maior.”

A volta das velhas ameaças

Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra, explica que com o fim da Guerra Fria e, em especial, a partir dos atentados do 11 de setembro, as ameaças globais mudaram de configuração. Saíram do convencional conflito entre Estados para o combate a outros agentes, como o terrorismo e o narcotráfico.

Em 2011, com a guerra na Síria, as ameaças convencionais ensaiam um retorno, já que Estados como Irã, Estados Unidos e a própria Rússia estão envolvidos indiretamente no conflito por meio de atores locais - as chamadas guerras de procuração. Mas agora, com a invasão da Ucrânia, esse retorno do convencional é consolidado, no qual Estados se envolvem diretamente.

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“Marca um retorno dessa geopolítica. A gente já tem uma guerra por procuração na Síria, mas agora a gente tem a entrada explícita da Rússia [na Ucrânia], o que aprofunda essa noção de retorno da geopolítica.”

“Hoje quase tudo é diferente de ontem”, disse à rede alemã DW o cientista político Johannes Varwick, da Universidade de Halle. “Estamos de volta a uma espécie de confronto de blocos, apenas as fronteiras do bloco ocidental mudaram para o leste em comparação com a época da Guerra Fria. A paz na Europa é coisa do passado e a confiança na Rússia foi completamente destruída. Levará décadas para restaurar a confiança entre o Ocidente e a Rússia.”

Mulher grávida é socorrida de maternidade bombardeada em Mariupol em 9 de março. Ela e o bebê morreram Foto: Evgeniy Maloletka/AP

O fim da ordem pós-Guerra Fria

Segundo Rafael Loss, especialista em política de segurança do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR), também em entrevista à DW, há uma destruição da ordem mundial pós-Guerra Fria. A consequência será um fechamento das alianças militares, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que deve cada vez mais evitar novos membros.

“Se toda a arquitetura da aliança começar a desmoronar, e parece ser do interesse do Kremlin, isso colocaria muita pressão em uma série de países para pelo menos flertar com a proliferação nuclear, e isso teria um segundo e um terceiro efeito nas relações de segurança regional”, disse Loss. “Por exemplo, se a Turquia decidisse seguir esse caminho, o que isso significaria para a Arábia Saudita e o Egito?”

Mas, se por um lado a intenção de Putin era enfraquecer a Otan, por outro o conflito parece ter resgatado a importância que ela tinha na Guerra Fria. “Nós temos uma reconstrução da Aliança Atlântica, que foi criada como uma resposta à União Soviética”, afirma Poggio. “A existência de um inimigo comum foi um elemento importante para a união do chamado ocidente. O ocidente que vivia um período de desunião agora com a emergência de um inimigo comum novamente se une”.

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Uma Ucrânia fragilizada

Em um mês, o saldo da guerra - além dos milhares de mortos e 4 milhões de refugiados - é uma surpreendente dificuldade militar da Rússia em derrubar o governo de Volodmir Zelenski. Pelo contrário, o presidente ucraniano saiu de uma popularidade em queda para a projeção mundial. Além de sanções sem precedentes a Putin e ao sistema financeiro russo.

Mas ainda que Putin não tenha conseguido conquistar a Ucrânia como um todo, a existência do país como um Estado soberano já está fragilizada. Segundo Mariana Kalil, ao receber forças paramilitares na guerra, Zelenski perdeu o controle daqueles que estão lutando. O que acontecerá depois, com essas forças estrangeiras dentro do território ucraniano, é um mistério.

“Forças paramilitares não obedecem a hierarquia das Forças Armadas e nem ao presidente. Elas têm uma vida própria, com objetivos políticos próprios”, explica. “O Putin entra na Ucrânia com a desculpa de que é um Estado falido. O acidente, ao ajudar militarmente a Ucrânia por meio de armamento e de forças paramilitares, reforça esse discurso do Putin”.

Membros da Legião de Defesa Territorial na Ucrânia em Kiev em 17 de março Foto: Gleb Garanich/Reuters

“O Zelenski sabe o que está acontecendo e que ele está enfraquecido domesticamente porque essas forças não o obedecem. Então ele sabe que a palavra dele não coloca fim à guerra, mesmo que ele queira”.

Uma paz distante

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Neste cenário, Oliver Stuenkel vê enormes dificuldades para um acordo de paz num futuro próximo. “Nenhum dos dois lados parece ter a capacidade de uma vitória total, mas não há muita disposição em ceder. O Zelenski, mesmo se quisesse, hoje não teria como assinar um acordo de paz que prevê ceder parte do território ucraniano. E para o Putin seria humilhante se retirar agora”.

A expectativa é de que a guerra ainda se arraste por muito tempo, em conflitos urbanos. Além da piora na segurança, haverá o aprofundamento da pobreza e de deslocados no mundo. “A guerra na Ucrânia significa fome na África”, advertiu o Fundo Monetário Internacional (FMI).

“O número de pessoas que vão ser atingidas pela fome, em função do aumento do preço dos alimentos, será não só maior que essas guerras anteriores, mas maior que o impacto da pandemia. Será um evento com consequências que vamos sentir por algumas décadas”, completa Stuenkel.