Análise - As primárias de New Hampshire: eleição ou reality show?

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Por Cristina Soreanu Pecequilo
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Acompanhar as eleições presidenciais nos Estados Unidos é sempre desafiador devido às particularidades do sistema norte-americano como as primárias e o Colégio Eleitoral. Em 2016, o processo está sendo ainda mais curioso, uma vez que a suposta 'nova política' tem sido exacerbada pelos candidatos que tomaram a frente das disputas internas: Bernie Sanders pelos democratas e Donald Trump na arena republicana.  Em New Hampshire, Sanders e Trump venceram com cerca de 20% de vantagem sobre os adversários. Enquanto Sanders conquistou 60% dos votos, Hillary ficou com 40%, e Trump alcançou 34% contra um quase quádruplo empate: John Kasich 16%, Ted Cruz 12%, Jeb Bush e Rubio com 11%. A ascensão de Kasich, nome quase descartado antes da votação, revelou-se surpreendente. O declínio de Cruz era esperado tendo em vista o perfil menos religioso de New Hampshire, enquanto Bush e Rubio brigam para sobreviver. Mas o que é esta 'nova política'? Basicamente, a campanha dos dois candidatos que se definem (e são definidos) como outsiders é o requentar do mito do homem comum, filho de imigrantes, bem-sucedido, que luta contra a corrupção e os vícios de Washington. Três pilares os impulsionam: a performance midiática, as ideias polêmicas e a 'condenação' de terceiros pelos problemas norte-americanos, os grandes lobbies, as corporações, os políticos tradicionais, os ricos e Wall Street (Sanders) ou os políticos tradicionais, os imigrantes, os traficantes de drogas, o Estado Islâmico, a China, o México, a Índia, dentre outros (Trump). A questão anti-Washington vai além da crítica ao 'sistema'. Afinal, quando emitem suas propostas, Sanders e Trump desconsideram o que é o funcionamento de um regime democrático, sustentado em três forças, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Por mais poderoso que o presidente dos Estados Unidos seja, e existem mecanismos constitucionais que permitem uma ação até mais autônoma, qualquer proposta precisa passar por um Congresso e uma Suprema Corte.  Os discursos de vitória nas primárias de Sanders e Trump, guardadas suas diferenças, passam ao largo destas realidades da negociação e da convivência entre os poderes. Inclusive, foram discursos de candidatos à presidência e não de candidatos em primárias. O objetivo direto é pressionar os adversários e aproveitar o momento, como parte do jogo político mais tradicional que ambos dizem repudiar, apesar da batalha estar apenas no começo, culminando com a Super Terça de 1º de março.  Taticamente, Sanders e Trump são muito parecidos mesmo que suas propostas sejam muito diferentes, indicando que sua legitimidade virá do povo e não do 'sistema', como uma democracia direta. Sanders diz que seu governo será representativo de uma revolução popular dos pobres e da classe média contra os ricos e as elites, Trump terá a autoridade da América bem-sucedida e que trabalha (e que será dirigida por ele como um CEO - um chefe executivo de empresas), na qual todos os pobres e classe média podem ser ricos, desde que libertos das amarras do Estado. Trump é a quebra de Obama, Sanders é o aprofundamento de Obama que, em sua visão, fez muito pouco. Independente do que esteja por vir, Sanders e Trump são fenômenos, mas que apenas repetem temas conhecidos, favorecidos pelo carisma e novidade. Ambos são populistas, vivendo um programa televisivo com os eleitores: um reality show de como consertar a América. Curiosamente, quem está de fora dos Estados Unidos e os ouve falar corre o risco de acreditar que o país está à beira do precipício. Existem muitos problemas de desigualdade social e gênero, violência endêmica, ameaças como tráfico de drogas e terrorismo, competição dos emergentes, mas Obama reagiu a vários deles, com sucesso.  Os Estados Unidos de 2016 são muito diferentes do que os de 2008. Da campanha ao governo há uma grande diferença. Entretanto, não se pode ignorar que entre os favoritos há um perigoso descolamento entre o discurso e a realidade que pode agradar as minorias partidárias envolvidas nas primárias, mas que não necessariamente é melhor para o país, e dificilmente o será para o mundo.* Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e autora de 'Os Estados Unidos e o Século XXI' e 'O Brasil e a América do Sul'

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