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Análise - Belo Monte e o ‘interesse nacional’

Análise publicada originalmente no Estadão Noite Nessa quarta-feira, 27, o Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1) derrubou a liminar que suspendia a licença de operação da hidrelétrica de Belo Monte, situada na Volta Grande do Xingu, Estado do Pará, Amazônia brasileira. Para tanto, o Estado, por meio da Advocacia Geral da União, recorreu ao instrumento jurídico chamado suspensão de segurança, o qual possibilita a suspensão da execução de decisões judiciais que possam acarretar graves lesões à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Esta não foi a primeira vez que este recurso foi utilizado para garantir que se desse prosseguimento, em suas distintas fases, ao projeto de construção de Belo Monte, obra que tem significado disputas e controvérsias há mais de 30 anos. Entender sobre o que nos falam estas disputas, com toda sua longevidade, e também o significado da insistente suspensão da norma para sua realização é fundamental para se compreender o Brasil de hoje.  Criada no período da ditadura militar, pela Lei nº 4.348 de 26 de junho de 1964, a suspensão de segurança tem como característica o fato de que, para ser deferida, não requer do julgador a análise do mérito propriamente dito da decisão, mas apenas sua potencialidade de causar grave lesão aos bens jurídicos tutelados pela lei, quais sejam a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas. Isto é, a aplicação da suspensão de segurança implica, de fato, na suspensão de uma norma que, excepcionalmente, considera-se desnecessário o seu cumprimento em favor de valores que lhe sobreponham. Neste caso, a norma suspensa é a necessidade de atendimento a condicionante instituída em etapa anterior do processo de licenciamento ambiental (durante a licença prévia, emitida em 2010) visando resguardar os povos indígenas locais das consequências da barragem de Belo Monte. Como, de acordo com o Ministério Público Federal, ainda não foram cumpridas as medidas exigidas em 2010, não é possível dar prosseguimento ao processo de licenciamento da obra. Tal posição foi acatada pela Justiça Federal de Altamira em janeiro deste ano, e é justamente esta a decisão judicial agora suspensa pelo TRF1. Suspender-se a norma, tal como ocorre acatando-se a suspensão de segurança solicitada pela Advocacia Geral da União, institui, portanto, um espaço excepcional no cumprimento da legislação. Há até o momento cerca de 60 processos judiciais movidos contra a construção da usina hidrelétrica Belo Monte, decorrentes de ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal no Pará, pela Defensoria Pública Estadual do Pará e por instituições da sociedade civil. Estas ações denunciam violações da legislação ambiental e de direitos previstos na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, e solicitam a paralisação da obra até que medidas de proteção ao ambiente e efetivação dos direitos socioambientais sejam asseguradas. Em todas essas dezenas de vezes em que o Judiciário foi incitado a se manifestar sobre a legalidade das diferentes etapas de realização da construção de Belo Monte, ou decidiu-se pela necessidade de mudança na forma de condução da obra (como ocorrido na primeira Ação Civil Pública), ou não houve manifestação do Judiciário (como na maior parte das ações, que se encontram sem julgamento), ou, decidiu-se pela interrupção da obra, sendo logo em seguida a decisão suspensa argumentando-se em favor do interesse nacional. Foi o que ocorreu agora, pela sétima vez, com a decisão da TRF1. Tal situação remete ao que o filósofo italiano Giorgio Agamben discute acerca das relações entre Estado, segurança e suspensão da norma. Segundo este autor, “o estado de exceção não é o caos que antecede a ordem, mas a situação que resulta de sua suspensão”, e que esta exceção representa “a violência como fato jurídico primordial”. Associando-se esta reflexão ao contexto das ações civis públicas em torno de Belo Monte, pode-se inferir que, quando o Estado brasileiro, por meio da Advocacia-Geral da União, recorre a um pedido de segurança para que decisões tomadas dentro do ordenamento jurídico sejam suspensas, está exatamente criando este estado de exceção, e delimitando quais os valores orientam o projeto nacional. Mais do que isso, quando a suspensão da norma implica em consequências desastrosas para povos inteiros, como no caso dos povos indígenas atingidos pela barragem, o estado de exceção implica na decisão acerca de quais vidas são politicamente relevantes na perspectiva do Estado. Belo Monte não é um caso isolado - basta olhar-se para a bacia hidrográfica situada ao lado do Xingu, do Rio Tapajós, na qual estão previstas até sete usinas hidrelétricas, em um processo extremamente conflitivo  - mas é paradigmático: foi justamente em oposição à hidrelétrica de Belo Monte, na época chamada Kararaô, que se constituiu em 1989 uma das maiores articulações entre Povos da Floresta e ambientalistas, sendo um dos marcos do chamado socioambientalismo, o ‘ambientalismo à brasileira’, capaz de congregar grupos sociais diversos em torno da conservação ambiental, em franco contraste ao modelo Yellowstone de preservação da natureza, iniciado nos Estados Unidos, que a valorizava porque presumivelmente ‘intocada’. É também deste período, em 1981, a instituição do licenciamento ambiental, instrumento regulador que inclui a análise da viabilidade ambiental e social de um empreendimento na legislação brasileira. Da forma como foi elaborado, uma de suas etapas consiste em uma audiência pública, isto é, um espaço de escrutínio público do empreendimento por especialistas, técnicos e população atingida.  O socioambientalismo e o licenciamento ambiental, com suas etapas de audiência pública, fizeram parte da construção de um projeto de país que abarcasse os direitos humanos e a questão ambiental; em suma, compunham o sonho democrático do período de redemocratização brasileira. Quando estas demandas se tornam empecilhos à segurança nacional, impondo-se que sejam suspensas, se torna imperativo refletir sobre quais novos projetos pretende-se assentar o futuro do País. 

Por Lorena Cândido Fleury
Atualização:

* Lorena Cândido Fleury é Bióloga, Doutora em Sociologia, Professora do Departamento de Sociologia e dos Programas de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) e Desenvolvimento Rural (PGDR) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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