Análise - Quem tem medo da política?

Texto publicado originalmente no Estadão Noite

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Por Fabrício H. Chagas Bastos
Atualização:

Há pelo menos dois anos aponto que a crise que vivemos hoje é sistêmica, nasceu em 2013. O sistema político brasileiro inteiro quebrou e vem se arrastando desde então. Àquela época, políticos aturdidos e discursos vazios enviavam um sinal claro: o espírito de sobrevivência da classe política brasileira é tão urgente que dá nó em pingo d'água. A tempestade perfeita só se fez confirmar.  Dito isso, vamos à análise do xadrez. Saquarema, luzia, tucano ou petralha, o oceano é uma boa desculpa para analisar os fatos longe da refrega. Há uma confusão imensa entre o que é legalismo - um legalismo varguista, tosco e tipicamente brasileiro, que apela aos 'inimigos a lei' a cada vez que algo 'dá ruim' do seu lado - e o que é o jogo político. Ninguém se importa com a higidez (ou mesmo a higiene) da República. No meio da tormenta, a pergunta que sobra é: na Quarta República, quem tem medo da política? O governo pode criar um terceiro mandato com um 'ministro da esperança' (um tanto tarde, mas como ela é a última a morrer, aceitemos o benefício da dúvida), a oposição pode esconder esqueletos e amantes no armário, mas o juiz não pode bancar posições políticas para defender sua investigação? A cartada de Dilma já foi bem analisada, não preciso voltar à carga. A oposição e os que querem o governo derrubado, de um modo simplório, jogam as regras do jogo - do ponto de vista da medição de forças, mesmo que o governo caia, continuarão onde estão. Alheio ao sistema, o novo ator incomoda profundamente todo o espectro político, especialmente aqueles que estão sendo alvejados (branqueados do mofo da corrupção e sofrendo com os disparos da lei) pela Lava Jato. Conversei com constitucionalistas (um deles juiz e petista) e a afirmação consensual é de que do ponto de vista do processo civil e penal, Moro tem jogado dentro e com as regras do jogo. O fato é que se tornou um ator político, pela natureza do malfeito que desvenda. Uma investigação federal sobre corrupção, com os maiores nomes da República envolvidos, nunca vai ser apolítica, imparcial etc. Veja-se o que aconteceu na Itália. Moro sabia que se não fizesse movimentos políticos - guardados estritamente dentro da lei (lembremos que até agora o STF não reformou nada daquilo que foi despachado por ele) - seria massacrado por todo o espectro político, tal qual aconteceu com os que trabalharam na Operação Mãos Limpas. Lá, Il Duce ajudou a difamar a Polícia Judiciária, amassou e fez juízes se aposentarem/deixarem o cargo antes do tempo, e depois reformou o sistema a seu bel prazer - o resultado sabemos bem qual foi. O que enerva a classe política é que Moro carrega o esprit de corps do Judiciário e sabe que se perder alguma batalha, vai fazer o teto de toda sua corporação desabar. Não há dúvida de que vá lutar para isso. É inútil e inocente, pensando nos termos da política brasileira, talhada no 'toma lá dá cá', dizer que os movimentos da última semana são 'o povo contra a elite'. Dizer 'respire fundo' ou 'o juiz deve ser ouvido e nunca visto' funciona em lugares onde a política não é jeca, coronelista, personalista e autointeressada. Nenhuma força política rompeu o discurso de segregação e ódio. Fala-se em golpe, ameaça democrática, mas não há palavra sobre a falência generalizada das instituições. A mentalidade da Guerra Fria, o 'nós contra eles', é intensamente útil para manter os privilégios de todos. Todos.  No meio de tudo, perdeu-se a dimensão de que assistimos a uma mudança geracional. O Brasil é mais bem-educado, alimentado e minimamente consciente do que se passa ao seu redor. Todavia, ainda é massacrado pelas imensas desigualdades e privilégios que dragam os avanços dos últimos vinte anos. Não existem propostas. Onde estão as lideranças? Não há espaço na política brasileira (por distância e por monopólio da 'geração ditadura') para os que se interessam pela res publica. Onde estão os Homens de Estado do País? FHC chamou Lula de analfabeto! Moro, ao mesmo tempo, politizou o Judiciário e judicializou a política. O sindicato da elite e a elite do sindicato se batem para ver quem resiste mais, agora que o caminhão foi ao muro. Disseminam medo, polarização e ausência de propostas. Ao final do dia, temos 204 milhões de cabeças que querem viver em paz e com estabilidade, sabendo que os impostos que pagam são e serão decentemente utilizados. Que não vão abrir os jornais a cada dia e encontrar mais e mais denúncias. Mujica há algum tempo mostrou que isso é possível.* Fabrício H. Chagas Bastos é professor de Relações Internacionais e Estudos Latino Americanos da School of Politics and International Relations da Australian National University e Research Fellow do Australian National Centre for Latin American Studies da mesma instituição. Doutor pela Universidade de São Paulo. E-mail: fabricio.chagasbastos@anu.edu.au

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