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Do palco para as ruas

Artistas desentocam e se juntam ao consenso de que há algo muito errado a ser consertado no planeta

Por Jotabê Medeiros
Atualização:

Eis um efeito colateral evidente das ocupações e manifestações ao redor do mundo este ano: ajudou a desentocar os artistas da música de seus refúgios. A era áurea da indústria musical tinha confinado o star system musical a grandes mansões em Bel Air e no uptown de Manhattan, e andava mais fácil nos últimos tempos promover conferências de paz no Oriente Médio do que encontrar um popstar misturado com o povo.Mas o último ano teve esse mérito. Em outubro, o colorido grupo pós-moderno Pinky Martini tocou This Land is Our Land no Ocupe Portland, acompanhado da Oregon Simphony, e foi um momento tão festejado pelos fãs da música quanto os guerrilla concerts que foram moda há alguns anos. No dia 1º deste mês, no Ocupe Wall Street, o cantor folk Jackson Browne foi a estrela no Liberty Plaza Park (também conhecido como Zuccotti Park), munido apenas de seu violão e de um parceiro de banda. E, ali mesmo no Zuccotti Park, duas lendas da música americana ressurgiram com seus bigodes e cabelos grisalhos: David Crosby e Graham Nash (que, ao lado do canadense Neil Young, integraram o Crosby, Stills, Nash and Young).“Havia muito tempo que a gente não cantava sem microfone. Acho que vai ser divertido”, disse Graham Nash, caminhando com seu violão em meio às tendas e aos garotos do Ocupe Wall Street. Ele e David Crosby tocaram cinco músicas, com a multidão cantando junto. Um manifestante exibia uma cópia de um velho vinil do disco de Crosby, Stills e Nash de 1969, enquanto eles tocavam a canção de abertura daquele disco, Long Time Gone.“Vocês conhecem essa canção. Então, ajudem a gente a cantar, combinado?” Nem precisava pedir. A resposta à canção Teach your Children parecia recuperar um espírito de época que não se via desde as grandes passeatas pelos direitos civis dos anos 60. “Keep going! Keep going!”, berrava Crosby, e a multidão repetindo entusiasticamente.“Todos sabem que estão sendo atacados”, disse Crosby à revista Rolling Stone. “As pessoas estão reconhecendo a verdade básica, que o sistema está investindo contra elas, e estão buscando igualdade. É algo simples: as pessoas estão acordando. É o que fazemos como músicos: queremos acordar as pessoas. Não quero falar para ovelhas. Quero pessoas vivas que estejam pensando e tentando fazer algo positivo para mudar sua situação. Sempre foi nisso que acreditamos”, discursou Nash.A verdade é que, para passar da crença para a ação, muitos dos artistas que estão nas ruas agora levaram mais de quatro décadas para se decidir. “O que me inspirou sobre a ocupação é essa ideia de que temos uma oportunidade para amarrar algo juntos. Todos os imensos problemas que temos na sociedade, educação, saúde, falta de emprego, violência, tudo vem de uma única raiz. Que é essa perversa desigualdade econômica que parece distorcer tudo”, afirmou Loren Taylor, o músico de 50 anos que se juntou em novembro ao movimento Ocupe Chicago, uma série de tendas de manifestantes ao longo do Chicago Board of Trade e do Federal Reserve Bank da cidade.Foi também em novembro que baixou em São Paulo um grande defensor do estilo “todo artista tem de ir aonde o povo está”. Trata-se de Neil Young, que veio a convite do festival SWU para falar de sua experiência como peregrino da boa vontade. A plataforma revolucionária de Neil Young tem dois pré-requisitos: compreende a necessidade de o artista sair de sua redoma e dar o exemplo em público e também de trazer a sua contribuição pragmática (e não mais vaga e abstrata e baseada num slogan de efeito).À espera de Obama. A proposta de Neil Young anda com ele por aí, é uma espécie de “OccupyInMotion”. Há dois anos, ele reconstruiu um automóvel Lincoln Continental Mark IV de 1959 e o transformou em um carro elétrico híbrido que, movido a biodiesel, faz até 160 km por tanque. A grande meta de Neil Young agora é ir dirigindo seu carro de emissão zero até Washington para tentar impressionar e convencer legisladores (ele espera que também Obama o receba) a promover os veículos e as tecnologias verdes, buscando um efeito cascata nos Estados Unidos. O LincVolt, como foi batizado, virou tema de um documentário que o mostra a bordo do carango, e também virou música, Johnny Magic. O filme foi dirigido pelo próprio cantor (sob o pseudônimo de Bernard Shakey), e já foi exibido em diversos festivais. Um site foi criado para explicar o experimento de Young. Uma das seções é um blog com fotos e um diário sobre as viagens do LincVolt. A saga de Neil Young no Lincvolt, convenientemente ajudado por um copiloto, projeta uma nova era de militância ambiental entre os artistas. Primeiro, requer informação no lugar da demagogia. Em seu blog, ele foi anotando as experiências dos últimos dois anos como uma espécie de guia da redescoberta de um mundo “exterior”, algo que voltava a ser familiar.

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“Estamos aqui sentados no Zingo’s Cafe de Bakersfield, Califórnia, o motorista e eu. Degustando bebidas quentes e ovos e observando os moradores nos intervalos do breakfast: caubóis e homens de negócio, mães e empreendedores. O Lincvolt esperando no trailer para voltar a São Francisco”, escreveu.Mais adiante, tendo voltado com seu sonho rodante à fábrica original da Ford, no Michigan (em Wixon, onde a Ford produziu carros durante 50 anos, cerca de 7 milhões de Lincolns, por exemplo), Neil anotou: “O motorista e eu traçamos um curso de volta às nossas raízes. Muito melhor para essa jornada pelo meio de nossas raízes. Mas, quando nos voltamos para acenar um adeus, senti que havia um espírito de agradecimento emanando em minha direção. Metade disso por causa do que acabamos de atravessar e metade porque é Dia de Ação de Graças no Canadá e, assim como o Lincvolt, estamos voltando para casa”.“Sou uma pessoa mais velha, tenho péssimos hábitos. Não me ouçam, não ouçam seus pais. Ouçam vocês mesmos, seus corações. Vocês são parte do planeta e é sua responsabilidade tomar conta de vocês e de todas as pessoas que vocês amam”, disse Neil Young em São Paulo, para uma plateia dispersa e pouco afeita às ocupações, mesmo as simbólicas. “Quando eu tinha a idade de vocês eu não tinha consciência do que estava acontecendo no mundo. Nós e o SWU estamos aqui justamente para despertá-los para a importância dessas questões.”Nos anos 60, Bob Dylan, Joan Baez, Cat Stevens e outros dominaram a arte da canção de protesto. Dylan chegou a ir à penitenciária para pedir pela libertação do boxeador negro Rubin Carter. No dia 17 de junho de 1966, dois homens e uma mulher morreram em decorrência de um tiroteio no Lafayette Bar and Grill, em Paterson, New Jersey. Embora não houvesse provas de seu envolvimento, Rubin Carter e um amigo, John Artis, foram encarcerados como suspeitos do crime (Denzel Washington estrelou um filme baseado na história, Hurricane, nome da canção de Dylan em homenagem ao esportista). Bob Dylan, desde então, sempre carregou consigo, para lá e para cá, mundo afora, o testemunho de uma vertiginosa transformação social, cultural, política e estética. Ele ascendeu para o mundo pop nos anos 60, em plena era hippie, em pleno epicentro hipster do Greenwich Village, em Nova York. Mas cedo percebeu claramente o tipo de armadilha que sobreviria se assumisse aquela vertigem comportamental como um tipo de patrimônio ideológico. Sua originalidade consistiria em dialogar (e influir) no mundo sem se deixar aprisionar num arcabouço de “movimento” ou gueto. John Lennon mobilizou metade de uma cidade, em dezembro de 1971, em um concerto que protestava contra o encarceramento de um homem pela posse de dois cigarros de maconha. Era John Sinclair, que tinha pegado 10 anos. Lennon compôs uma canção especialmente para o evento e a manifestação teve efeito arrasador. Poucos dias depois, a Suprema Corte ordenou a soltura de Sinclair.

 

Boa parte dos artistas dos anos 60 acreditava de fato que tinha o dever ético de se engajar em causas justas, e mantinha essa disposição mesmo com uma repressão braba. O FBI perseguiu John Lennon com tenacidade. Entre os documentos que os agentes federais produziram sobre o cantor há um que afirma que Lennon encorajava “a crença de que possui visões revolucionárias (...) pelo conteúdo de algumas de suas músicas”. Outro dizia que o ex-beatle fez campanha pacifista e prometeu financiar uma livraria de esquerda em Londres. Um terceiro descreve uma entrevista de Lennon ao jornal Red Mole, de Londres, na qual o cantor “enfatizou seu histórico proletário e sua solidariedade com os oprimidos e desfavorecidos da Grã-Bretanha e do mundo”.Longe das grandes articulações de movimentos radicais, como os Panteras Negras, os novos artistas em busca da utopia das ruas constroem uma nova militância. Uma cena que surpreendeu o mundo este ano foi a presença da jovem e bem-sucedida atriz Anne Hathaway (de 29 anos, e uma fortuna estimada em US$ 58 milhões) marchando com manifestantes pela Union Square, em Nova York, em novembro, segurando cartazes e berrando palavras de ordem em apoio ao movimento Ocupe Wall Street. “Lousas, não balas!” e “Quadros-negros, não bancos!”, foram as placas que empunhou.Anne seguiu uma linhagem que já teve Jane Fonda, Susan Sarandon e Brigitte Bardot entre suas antecessoras, e abriu mão do conforto de seu loft para ajudar a modificar a cena social do seu país. Foi criticada por muitos e aplaudida por muitos outros pela atitude - como Jane Fonda na época de sua militância contra a Guerra do Vietnã, ela não parece se importar com nenhuma reação adversa.Pelo mundo todo, a força gravitacional das novas ocupações e da nova ordem no mundo parece não permitir mais essa polarização entre “gostei” e “não gostei”. O consenso é que há algo a ser consertado no planeta, e exigir a mudança é uma obrigação de todo mundo que consegue ouvir o ancestral chamado do humanismo.“Tentamos acreditar no poder de um sistema do pequeno grupo social”, explicou o músico e compositor Wong Hin-yan, de 26 anos, que se incorporou aos manifestantes na frente da sede do HSBC, no distrito financeiro de Hong Kong, em outubro. “Creio que a coisa mais importante é cair fora desse sistema de mercado e, se possível, cair fora do capitalismo passo a passo”, afirmou.Jotabê Medeiros  é repórter e crítico musical do Caderno2

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