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Ecos de um autocrata: as últimas do diabo

O haitiano Baby Doc e o tunisiano Ben Ali são os atuais destaques de uma sinistra lista de ‘patriotas injustiçados’ especializados em enganar, oprimir, roubar e matar o povo ao qual sempre juram amar

Por Sérgio Augusto
Atualização:

A França parece ter esgotado sua cota de boa vontade vis-à-vis exilados recendendo a enxofre e pejados de ouro; no caso de Ben Ali, literalmente: uma tonelada e meia de lingotes afanados do Banco Central da Tunísia. Baby Doc foi um vacilo, justificado pela má consciência dos franceses, os primeiros responsáveis pela degradação do Haiti, quando a ilha ainda se chamava Saint-Dominique.

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E agora? Que ressonâncias, no mundo árabe, terá o pontapé dado em Ben Ali? A "Revolução de Jasmim" ficará ou não restrita à Tunísia? O general Kadafi, aliado de Ben Ali e há 42 anos segurando o bridão na Líbia, já manifestou sua preocupação. Que, aliás, não lhe é exclusiva. Autoridades israelenses receiam que um regime liberal na Tunísia possa dar mole para o fundamentalismo radical, além, é claro, de pôr caraminholas na cabeça dos egípcios, tutelados por Mubarak há praticamente 30 anos. O presidente da Síria, Bashar Assad, ainda não se manifestou, mas também deve estar apreensivo.

Outro inquieto: o atual presidente do Haiti, René Préval. Seu mandato chega ao fim no próximo dia 7, embora já devesse ter terminado há muito mais tempo. À frente de um país arrasado por terremotos, secularmente dilapidado por ladrões sanguinários e culturalmente idiotizado por superstições, Préval foi pego de surpresa, como, de resto, o mundo inteiro, com a súbita chegada à ilha de Baby Doc.

Por que afinal ele veio? Banzo? Desejo de comemorar em casa as bodas de prata de sua fuga para a França ou apenas botar olho grande na sucessão de Préval, e, na eventualidade de escapar da prisão por conta dos US$ 120 milhões de dólares que roubou e das 75 mil pessoas que, no reinado dos Duvaliers, foram mortas ou sequestradas pelos tontons macoutes, candidatar-se à presidência?

Oficialmente, Baby Doc veio atrás de um passaporte, documento também cobiçado por seu sucessor, Jean-Bertrand Aristide, corrido para fora da ilha sete anos atrás e desde então exilado na África do Sul, de onde ameaçou voltar a qualquer momento, para desespero de Préval. Da boca pra fora, Aristide não ambiciona recuperar o poder perdido, quer apenas ajudar o país, mourejando em mutirões educacionais. O patriotismo de Baby Doc é mais "abrangente". Por acreditar que o Haiti precisa dele mais do que nunca, e não somente para alfabetizar as massas, alimenta a ilusão de ser reconduzido ao que restou do Palácio Nacional nos braços do povo, como Getúlio Vargas (em 1950) e Perón (em 1973). Pirou.

"Sou o único que pode tirar o país de sua atual miséria", gabou-se o herdeiro de Papa Doc, como se não fosse um dos responsáveis por ela. Mais um hedonista mimado pelo pai do que um pé-cascudo do porte de Idi Amin, torrou quase tudo que depositara na Suíça para viver como um nababo na Riviera Francesa. Já estava na bacia das almas ao ser entrevistado, num café de Paris, pelo jornalista italiano Riccardo Orizio, correspondente em Londres do jornal La Repubblica, para um livro que na Itália se intitula Parola del Diavolo, mas saiu primeiro na Inglaterra, em 2003, com o título de Talk of the Devil. É uma coletânea de conversas com déspotas caídos em desgraça e no esquecimento de muitos, vivendo seus últimos dias na ignomínia.

Além de Baby Doc, Orizio conseguiu, a duras penas, localizar e conceder a palavra a Idi Amin, ao também africano e antropófago Jean-Bédel Bokassa (o "ogro de Berengo"), ao genocida etíope Mengistu Haile Mariam, ao fantoche do Kremlin na Polônia Wojciech Jaruzelski, a Mira Markovic (mulher do verdugo sérvio Slobodan Milosevic, então incomunicável num presídio de Haia, por crimes contra a humanidade) e à "Viúva Negra" da Albânia Nexhmije Hoxha (que ao lado do marido, Enver, morto em 1985, manteve um dos regimes mais fechados do mundo, durante quase meio século).

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São todos paranoicos, delirantes, messiânicos, quando não bufônicos, como Idi Amin, na época infantilmente encantado por sua TV via satélite, ou ainda prisioneiros da arrogância, como a sra. Hoxha, que nunca se arrependeu de haver pessoalmente ordenado que todos os estrangeiros tivessem seus bigodes e barbas raspados pelas autoridades alfandegárias antes de entrarem na Albânia.

O único tinhoso disponível que se recusou a falar foi o ditador panamenho (1983-1989) Manuel A. Noriega, ora cumprindo pena na França até 2017, por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Num bilhete para Orizio, assim justificou seu silêncio: "Deus, o grande Criador do universo, Aquele que escreve certo por linhas tortas, ainda não deu a última palavra sobre Manuel A. Noriega". Subentende-se que se julga, como os demais, inocente, injustiçado, vítima de um complô armado pelos inimigos, um patriota que sempre agiu pelo bem do povo.

Enganar, oprimir e roubar o povo que dizem amar é mais que uma dissonância cognitiva dos ditadores, é sua maior abjeção. Por sinal expressa exemplarmente num cartaz que Baby Doc e seus sicofantas espalharam pelo Haiti, com o seguinte alarde: "Eu gostaria de enfrentar o tribunal da história como o responsável pela implantação definitiva da democracia no Haiti". Assinado "Jean-Claude Duvalier, presidente vitalício".

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