Francisco, um provocador

O papa Francisco é um comunicador de mão cheia. Intuitivo. Simples. Direto. Seu estilo é surpreendentemente solto e provocador. Seu discurso é coloquial e próximo. É um papa falante, alegre, com jeitão laico. Um papa diferente.

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Por Carlos Alberto Di Franco
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Mas é o papa. E tem plena consciência do seu ministério e de sua autoridade. Não pode ser interpretado pela metade. Ele demanda contexto. Francisco dá boas manchetes. Mas é preciso ir ao cerne do seu pensamento. Caso contrário, cria-se a síndrome da esquizofrenia informativa: um papa fala na manchete, mas outro discursa no conjunto da matéria.

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Suas entrevistas no avião papal suscitam títulos com pegada e costumam render boas suítes, sugestivos desdobramentos do noticiário. O rebuliço é intenso. Sobra versão. Falta, frequentemente, fazer a lição de casa básica: ler a íntegra da entrevista. Francisco não mexerá nas doutrinas da Igreja Católica. É seu fiel depositário. Mas, sem dúvida, promove uma mudança de tom.

O papa, creio, quer provocar uma ruptura com uma agenda negativa e reativa. “Não podemos insistir somente nas questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e ao uso de métodos contraceptivos. Isso não é possível. Eu não falei muito dessas coisas, e me censuraram por isso. Mas quando se fala disso é necessário falar num contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido, e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente. A proposta evangélica deve ser simples, profunda, irradiante. É dessa proposta que vêm as consequências morais”, sublinha o papa.

Francisco, por óbvio, não minimiza a gravidade dos equívocos morais. Sua defesa da vida, por exemplo, desde o momento da concepção, é clara, forte, sem nenhuma ambiguidade. A doutrina é transparente. O papa está preocupado não apenas com a atuação pública da Igreja Católica, mas com o cuidado pastoral das pessoas concretas. Que erram. Sofrem. E se arrependem. Seu foco não são os processos, mas as pessoas. Quer uma Igreja mais compassiva. E isso é cativante.

Francisco, com sua simplicidade desconcertante, mostra que a relação com Cristo brota da forte consciência da miséria humana e da absoluta confiança na misericórdia de Deus: “Sou um pecador. E não é modo de dizer, um gênero literário. Sim, talvez possa dizer que sou um pouco astuto, sei me adaptar às circunstâncias. Sou também um pouco ingênuo. Mas a melhor síntese, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exatamente esta: sou um pecador para quem o Senhor olhou. Quando vinha a Roma, visitava a Igreja de São Luís dos Franceses com muita frequência. Lá, contemplava o quadro Vocação de Mateus, de Caravaggio. Aquele dedo de Jesus assim dirigido para Mateus. Assim sou eu. Assim me sinto. Como Mateus. Este sou eu: um pecador para o qual o Senhor voltou o seu olhar”.

A perspectiva do olhar de um Deus compassivo, acolhedor, está metida na alma de Francisco e ganha corpo no seu projeto pastoral. “A coisa que a Igreja mais necessita agora é a capacidade de curar feridas e de aquecer o coração dos fiéis, aproximar-se. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se o seu colesterol ou sua glicose estão altos. Devem-se curar as feridas. Depois podemos falar do resto.”

Francisco insiste muito na essência da mensagem cristã: o carinho, o acolhimento, a compaixão de Deus. Por isso decretou o Ano da Misericórdia. A “plataforma moral” da Igreja não pode ser erguida sobre os alicerces do legalismo, mas em cima dos sólidos pilares de um projeto de salvação. Sem isso, e sem o exercício da liberdade humana, o edifício da Igreja “corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais”.

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Impressiona, e muito, o tom positivo que permeia todos os discursos do papa. Impressiona igualmente a transparência de Francisco em suas entrevistas aos jornalistas. É um papa sem tabus. Ele tirou a Igreja do córner. Francisco rasga um horizonte valente e generoso. Deixa claro que os católicos não são antinada. E que o cristianismo não é uma alternativa negativa, encolhimento medroso ou mera resignação. É uma proposta afirmativa, alegre, revolucionária. Os discursos do papa não desembocam num compêndio moralizador, mas num desafio empolgante proposto por uma pessoa: Jesus Cristo. Os jovens entendem o recado e mostram notável sintonia com Francisco.

Os que apostam na descontinuidade vão perder o jogo. João Paulo II, Bento XVI e Francisco tocam a mesma música, embora com gingado diferente. A formidável cobertura pela imprensa da eleição de Francisco revelou, de saída, alguns sinais importantes. O primeiro deles, sem dúvida, foi a notável unidade dos cardeais. A surpreendente rapidez do processo eleitoral foi um testemunho inequívoco de que João Paulo II e Bento XVI, ao longo dos seus pontificados, investiram generosamente na construção da unidade da Igreja. A eleição meteórica do cardeal Jorge Mario Bergoglio foi, no fundo, um forte chamado à unidade e à continuidade.

O pontificado de Francisco está sendo um testemunho de fé, convicção e coragem. Ao contrário dos que dentro da Igreja Católica cederam aos apelos da secularização, Francisco sempre acreditou que a firmeza na fé e na fidelidade doutrinal acabará por galvanizar a nostalgia de Deus que domina o mundo contemporâneo. Acredita que o esgotamento do materialismo histórico e a frustração do consumismo hedonista prenunciam um novo perfil existencial.

Enfim, na visão do papa, o terceiro milênio trará o resgate do verdadeiro humanismo.

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