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Lucas Mendes: Airosa, serena, bizarra, Lisboa

Há ensaios sobre a vocação portuguesa de sofrer em silêncio.

Por Lucas Mendes
Atualização:

A pobreza portuguesa não está na cara, nas ruas e quase nunca visível a olho nu. Atrás das paredes, os portugueses sofrem, mas sem os quebra-quebras, greves, molotovs e gritos. Há ensaios sobre esta vocação portuguesa de sofrer em silêncio. Ou pelos fados. Este ano, o mais antigo partido português, o Comunista, fez 91 anos, marcados pelo 19º Congresso quatrienal. São 59 mil camaradas. Em número de afiliados, só perde para o PSD, de centro-direita, que está no poder. Em votos, o PCP não chegou a 8% nas últimas eleições parlamentares e nunca passou de 9%, mas os números não encolhem nem envelhecem. A idade média dos afiliados pagantes é de 47 anos, o mais jovem tem 23 anos. No comitê central, vinte se identificam como empregados, 13 como intelectuais e 45 como operários. Durante os três dias de congresso, fiquei surpreso com a intensa cobertura da imprensa dada aos discursos e cantos: muito ânimo velho, poucas ideias novas. O líder Jeronimo de Sousa propõe uma convergência com o Partido Socialista e o BE, Bloco de Esquerda: na convergência, os dois partidos "convergem" para o Partido Comunista Português - PCP - para rejeitar os acordos com a Troika e preparar uma saída do euro. Mesmo se os socialistas e os blocos de esquerda aderissem não teriam votos suficientes. Meu amigo de quatro décadas, comunista muito antes, foi ao congresso e diz que bateu "palmas só com a mão esquerda". Foi afiliado contribuinte por pouco tempo. Deu adeus com a mão direita quando acharam que ele era subversivo. Apesar de tudo, prefere o partidão. José Duarte é homem de jazz em rádios e universidade. Era, até a crise. Esta semana, quando nos encontramos para um almoço, um dos programas dele com o adorável nome A Menina Dança? tinha acabado de ser cancelado por falta de verba. O da faculdade, Jazz e Brancas, já tinha sido cancelado pelo mesmo motivo. Resta o semanal 5 Minutos de Jazz. Música brasileira é íntima do José Duarte e foi mais uma vítima da crise portuguesa. Em um ano, Duarte e sua mulher, Frances, foram de uma renda de mais de 5 mil euros (R$ 13 mil) por mês para 2.500 (R$ 7,5 mil). Venderam o carro, cortaram até o osso, mas - não sei se vem da música - mantêm o bom humor. Ela, com mais de 60, entrou para a faculdade, está craque em computação. Adriana, a filha mais nova, prepara o lançamento do terceiro CD, com jazz, bossa e blues. Os Duartes são apenas um acorde nesta ópera do empobrecimento português, onde o Ministério da Cultura foi extinto. Nosso querido, pacato e recatado Portugal vive uma onda inédita de violências. Roubo em primeiro lugar, tráfico de drogas em segundo e pedofilia, o terceiro crime mais comum em Portugal. Oitenta casos de abusos sexuais por semana. Um único carpinteiro de 53 anos é acusado de ter cometido 165 mil crimes contra seis crianças com menos de 14 anos, milhares documentados por ele mesmo. A superlotação das prisões foi matéria recente no New York Times, em que o ministro da Justiça reconhece que as prisões portuguesas são vergonhosas, mas, como tantas portuguesices, há bizarrices. Muitos presos não querem sair das penitenciárias porque "lá fora não tem emprego nem comida, só ócio e depressão", contou um líder sindical dos guardas. O plano pré-crise era construir dez novas penitenciárias por 750 milhões de euros. Pelo novo plano, será construída uma, em Açores. Penitenciários que se penitenciem e se empilhem. Oficialmente, o número de prostitutas diminuiu. Não na vizinhança dos hotéis de luxo no parque Eduardo VII. Elas aparecem antes de anoitecer. Fiz a pequisa. Tereza tem por volta de 50 anos e 70 quilos bem protegidos debaixo de um casaco caro, cachecol de caxemira ou imitação, óculos de aro branco grosso. Pinta de diretora de escola primária. Tereza disse que podia entrar em qualquer restaurante ou hotel fino. As duas amigas mais jovens, sentadas no banco, confirmaram. Elas também entram. Ficou muitos anos longe das ruas de Lisboa, mas a demissão da confecção apertou as contas em casa. Já chegou a faturar 400 euros por dia quando o preço para subir no quarto ainda era de 70 euros, uns R$ 190. Hoje é de 50, mas "as meninas", diz ela, "fazem no carro, no banco do parque ou atrás da árvore por 20 ou 30 ou trinta euros". Fazem de tudo, menos sexo anal, coisa de brasileiro: "Mas (as prostitutas brasileiras) não fazem os exames trimestrais de saúde, nem sempre usam caminhas. Ninguém gosta delas". Só os portugueses. Outras opções sexuais estão nas revistas semanais, entre elas uma que recomenda um presente inocente para cada dia do mês de dezembro até o Natal e duas páginas de novos brinquedos de cama - entre eles as "brazilian balls", bolas afrodisíacas que liberam um óleo lubrificante. E o "Squee 12", novo modelo de simulador de sexo oral com 10 linguas e mais velocidades, por 54 euros (R$ 147). Pela diversidade, as vendas de brinquedos vão bem e não estão na lista das falências de 2012, número recordista este ano, 42% acima do que em 2011 até novembro. O comércio lidera as falências, os restaurantes aparecem em quinto lugar, mas nos dois últimos meses as receitas caíram 50%. Aumento dos impostos é uma das explicações. Cortes nos salários e medo de perder empregos são outras. Nas crises sempre há oportunidades e a indústria de marmitas prospera. Bancos e empresas reformaram suas cozinhas para acomodar executivos marmiteiros. Não encontrei restaurantes vazios. Infelizmente, Lisboa entrou no mapa do "fudismo" internacional, esta mania de comer, cozinhar e falar sobre comida. Raramente era preciso fazer reservas nos restaurantes lisboetas, ninguém sabia o nome dos chefs. Não só Lisboa, mas Portugal está no mapa dos "fudistas". Bacalhau tradicional? O frito está na moda. Sábado, uma revista semanal de peso político, estilo Veja, nesta edição oferece um guia de 62 páginas com os 104 melhores restaurantes portugueses. Precioso. Na categoria "econômicos", de cozinha simples, genuína e barata, O Moinho do Cu Torto aparece em terceiro lugar, logo atrás da Tasca do Joel, em Peniche. Agora, sem sacanagem. Quem estiver interessado na alma e na identidade portuguesas, que vá ao ensaio do Boaventura de Sousa Santos (Portugal - Ensaio Contra a Autoflagelação) e se vislumbre com dois versos de Afonso Duarte: "Quero ser europeu: quero ser europeu/ num canto qualquer de Portugal". BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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