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Ninguém vê o premiê

Um artista e sua obra de arte descortinam o tabu que há cinco anos atormenta a sociedade israelense: a ausência-presença do primeiro-ministro que sumiu repentinamente da política e do poder, sem permitir luto ou despedidas

Por Gabriel Toueg
Atualização:

Representação artística do ex-premiê no quarto de hospital , na Kishon Galery, em Tel-Aviv. REUTERS/Nir Elias

 

 

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A transferência de Sharon, hoje com 82 anos, foi uma tentativa de mantê-lo entre os seus durante um fim de semana. No domingo seguinte, porque as semanas recomeçam aos domingos em Israel, ele voltou para o hospital. O vai-e-vem é uma das poucas notícias de conhecimento público sobre Sharon, em uma história cheia de polêmicas que começou com a criação do Estado, em 1948, e terminou repentinamente, sem acabar de verdade, com o derrame fulminante que colocou Sharon em coma em janeiro de 2006.

 

Fontes médicas disseram à imprensa, no dia da transferência, que já não esperam que o quadro do ex-premiê tenha qualquer evolução expressiva. Melhor será, dizem, mantê-lo em casa. A saída e a volta para o hospital foram feitas discretamente, e as poucas imagens disponíveis mostram apenas a ambulância amarela escoltada e uma cerca verde escondendo o caminho entre o edifício e a viatura. Ninguém vê o premiê.

 

Os médicos querem que a visita se repita mais algumas vezes, outras três ou quatro, antes de Sharon ser transferido de forma definitiva. A ideia é checar as condições do novo ambiente e dos aparatos médicos para que ele possa ser mantido em casa, com a família.

Sharon é o líder israelense que desapareceu da política e do noticiário desde o coma. O público não pode vê-lo e é quase um tabu falar sobre ele. Se Sharon tivesse morrido – ou talvez sido vítima de um assassinato político, como ocorreu há 15 anos com Yitzhak Rabin – poderia ser diferente. Entretanto, tendo desaparecido quando ainda estava no cargo, segurando a respiração do público e atendendo os pedidos fervorosos dos ultraortodoxos, Sharon virou tema do qual não se deve falar. Muito menos de que se deve fazer piada, embora cá e lá é possível ouvir anedotas de mau gosto sobre o estado vegetativo do premiê, mantido vivo apenas por máquinas que os filhos se recusam a permitir que sejam desligadas – em um aparato médico e de segurança que custa ao país muitas centenas de milhares de dólares por ano, com enfermeiras de plantão todo o tempo, quarto separado vigiado por circuito interno de televisão e guardas.

 

Israel já trocou de primeiro-ministro três vezes desde o sumiço de Sharon. Ehud Olmert assumiu interinamente logo depois do coma do antecessor, e foi eleito em seguida. Caiu. Tzipi Livni, a número dois do Kadima, partido que Sharon criou para dar resposta à falta de um partido centrista no país, assumiu no lugar de Olmert. Em 2009 o Kadima teve mais assentos que o Likud, mas Tzipi falhou no que Bibi Netanyahu teve sucesso: formar uma coalizão para governar o país que saía da guerra em Gaza.

Há poucos detalhes conhecidos do público, e mesmo da imprensa, sobre o estado de Sharon, desde que sofreu o ataque e desde o coma. A transferência para a casa da família, em um local próximo de Sderot, cidade que ficou famosa pela chuva de mísseis Qassam enviados pelo Hamas da vizinha Faixa de Gaza, é um dos poucos desses detalhes. Logo antes, contudo, um artista israelense radicado na Alemanha criou um capítulo para Sharon, e para o público que não vê e não conversa sobre o tabu: uma cópia do ex-premiê, de acordo com a imaginação da liberdade artística de Noam Braslavsky, o criador.

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Paciente falso. Ao visitar a pequena galeria localizada em uma rua sem importância do coração de Tel-Aviv, sinto um choque. Ali, em uma sala sombreada, em um cenário que tenta imitar um quarto de hospital, está Sharon, deitado em uma cama, vestido em uma camisa azul impecável, com as pernas cobertas e os olhos semicerrados. A estátua está respirando até. A reprodução é cruel de tão fidedigna. O trabalho traz de volta aos olhos israelenses o premiê desaparecido.

 

Ao lado da obra, cuidando do “paciente”, está Braslavsky. O artista israelense, radicado na capital alemã há vinte anos, está agachado ao lado da cama. Faz ajustes no aparelho de mp3 que reproduz um som de respiração, e tenta sincronizar o barulho impertinente ao movimento do pulmão de mentira do Sharon de plástico. A respiração é o único sinal vital que o premiê, o verdadeiro, ainda tem, depois de ter sofrido dois derrames – um no meio de dezembro de 2005 e o segundo no começo de 2006.

 

O estado de saúde de Sharon – sobre o qual ele mesmo fez piada após a primeira internação – criou tensão e apreensão na época. Na entrada do ano civil de 2006, que não tem comemorações especiais no país, os israelenses acompanhavam os relatórios divulgados de tanto em tanto pelos médicos do hospital Hadassah, em Jerusalém, onde o premiê estava então internado. Em conversas de botequim criticava-se o fato de Sharon ter sido levado ao hospital em uma ambulância, por terra, em uma viagem que custou cerca de uma hora em vez dos poucos minutos que demoraria em um helicóptero.

Nostalgia e português. Na galeria, ao me encontrar, Braslavsky diz que sabe “um pouco” de português. Arrisca algumas palavras no idioma e revela um brilho nos olhos ao contar de quando visitou o Brasil, durante seis meses, entre 1984 e 1985. Depois, de volta a um hebraico agitado, frenético, e com olheiras que revelam a noite insone que seguiu a abertura da exposição na véspera, ele é enfático ao garantir que a obra não quer ter caráter político. “Tentei não tomar lado político nenhum, e me refiro apenas ao fenômeno”, dispara.

 

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Mais: que não pretende sequer provocar. Contudo, a instalação cutuca uma ferida aberta e mal curada, toca em um tema que é quase tabu na sociedade israelense: a ausência-presença do premiê que sumiu da política de repente, sem sequer permitir luto e despedidas. Hoje, simplesmente não se fala em Ariel Sharon, o buldôzer militar e político, acusado pelo massacre de Sabra e Shatila nos anos 1980 e apontado pelos palestinos como o pretexto para o começo da Segunda Intifada, ao visitar a Esplanada das Mesquitas em setembro de 2000.

Logo antes de entrar em coma, Sharon gozava de popularidade das mais altas no país, apesar de ter retirado, de forma unilateral e polêmica, 9 mil colonos de suas casas em assentamentos judaicos na Faixa de Gaza meio ano antes. Dizem por aqui que o ataque repentino que o levou ao coma foi resultado da reza fervorosa dos judeus ortodoxos, contrários à entrega de territórios aos palestinos.

Braslavsky sabe bem disso tudo. À beira das águas mediterrâneas de Tel-Aviv, três quadras e meia da galeria que guarda sua obra, ele confessa: “Estou tocando em um nervo aberto”. Não é a primeira vez que ele procura manipular o público emocionalmente. Sequer a primeira vez que parece conseguir. Mas ele diz, numa busca por uma justificativa, que “o artista tem o direito de tocar em temas que ninguém toca”.

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Enquanto conversávamos, ainda na galeria, um sujeito idoso apareceu, com andar lento, amparado pela filipina que toma conta dele – típica cena israelense. Entrou, olhou a obra demoradamente, trocou algumas vezes o ângulo. Depois, ao passar de volta pela cortina que separa o “quarto de Sharon” da entrada do local, disparou a Braslavsky, com um olhar sincero e emocionado: “Obrigado por trazê-lo de volta”.

 

O artista gosta da reação. Diz, com o peito cheio de egocentrismo de criador, que é o que pretendia com sua criatura adoecida. Braslavsky impôs uma regra para a visitação na galeria: apenas duas pessoas por vez podem entrar. “Quis proporcionar uma visita íntima em que cada pessoa ou casal pudesse estar alguns momentos com o líder”, explica Braslavsky.

Mesmo a reação do principal assessor de Sharon, Raanan Gissim, lhe parece emocionante. Ao visitar a obra, antes da abertura da exposição, Gissim esbugalhou os olhos e suspendeu a respiração. “Foi a reação mais tocante, a prova de que meu trabalho é fiel”, diz, em um autoelogio sem qualquer intento de disfarce ou sombra de modéstia.

 

Porta-voz da família de Sharon, Raanan Gissim respondeu ao convite que o artista fez para que também eles viessem ver sua obra. Não quiseram. “É claro que não viriam, eles têm o original em casa”, diz, ao terminar uma limonada e enterrar os pés na areia fofa da praia de Tel-Aviv. “No lugar deles, teria feito o mesmo, teria ignorado o convite”, reconhece.

 

Rituais. Ao contar das experiências que teve no Brasil de 1985 – que incluíram um assalto negociado em Fortaleza, visitas a terreiros de candomblé, rituais marcados a faca e sangue e passeios por favelas no Rio – Braslavsky se lembra de um episódio trágico: o luto e o choro dos brasileiros após a morte de Tancredo Neves. “Estava mais interessado em sexo, drogas e forró, não acompanhava as notícias, nem sequer sabia que um presidente havia sido eleito, mas me emocionei com a comoção nacional”.

 

Ao dizer isso, para, reflete e, encarando o vai-e-vem calmo das ondas do mediterrâneo outonal, procura uma ligação entre o luto brasileiro com a morte de Tancredo e a ausência do luto no caso do personagem que é sua obra. “O Brasil influenciou muito na minha obra”, diz, enfim. E menciona a forma como os rituais que viu no país mexiam emocionalmente com as pessoas. “É isso que eu procuro fazer”.

 

GABRIEL TOUEG É JORNALISTA E VIVE EM ISRAEL DESDE 2004, DE ONDE TRABALHA COMO CORRESPONDENTE FREELANCER PARA A IMPRENSA BRASILEIRA

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