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O adeus à onça

Por Marcos Sá Corrêa
Atualização:

Há onças que nos perseguem pela vida afora. Como a que atravessa o caminho de Dante para o Inferno. "Lonza leggera", de pelo "macolato", vista na "selva selvagem, dura e forte" da Itália do século 14, 200 anos antes que as onças propriamente ditas fossem descobertas pelos europeus na América.Que "lonza" era então aquela, tão longe de casa e de época? O livro Jaguar, do biólogo Evaristo Eduardo de Miranda e da jornalista Liana John, acaba de dar, se não a resposta, o pretexto para desistir da pergunta. Afinal, todos os felinos do mundo vêm de um certo Proailurus, que andou pela Europa há uns 25 milhões de anos. A descendência do Proailurus só veio a perder definitivamente a cidadania europeia há cerca de 10 mil anos, no corpo da uma Panthera onca toscana. "Toscana", portanto, como a terra de Dante. Daí a parar na Divina Comédia é um pulo. Grande, sem dúvida. Mas nada que se compare a saltar de um continente a outro, por cima do Atlântico, antes do descobrimento. Basta isso para fazer de Jaguar um desses livros que contam até o que sequer passou pelas cabeças dos autores. O rei das Américas. Aí, não há como deixar de conferir o que eles têm a dizer nas 299 páginas seguintes. O livro oculta um subtítulo: O Rei das Américas. Discreto como a própria onça, ele escapou da capa para as páginas internas. Na capa, poderia espantar quem considera o que jaguar é o rei de um reino perdido. Ele perdeu, por exemplo, boa parte de um território que invadia os Estados Unidos - pelo menos até o Grand Canyon - e costeava as praias brasileiras de norte a sul, enquanto nelas chegava a Mata Atlântica. Está na lista de espécies ameaçadas de extinção da União Internacional de Conservação da Natureza. Quantos são? Com boa vontade, 100 mil. Seja qualquer for seu número, trata-se de uma população cada vez mais isolada em fragmentos florestais declinantes e santuários da fauna tropical que se espalham por 18 países. E de que lhe adianta ser rei nesses tempos republicanos, em que os Estados Unidos lhe negaram em 2008 visto de entrada para projetos de repovoamento? Se ele zanzasse livremente de um lado para outro, abriria brechas na fronteira mexicana a todos os migrantes indesejáveis. Como rei, perdeu até estatura. Mal chega às costelas do bisavô Panthera atrox, o leão-americano que, pelos fósseis encontrados na Califórnia, passava dos 3 metros de comprimento e dos 300 quilos de peso. O Panthera atrox acabou faz tempo, junto com todo o bestiário mastodôntico que a presença humana tirou do mapa americano milênios antes do Descobrimento. E foi assim, pela mão do homem e da mudança climática, que começou o reinado do jaguar como o maior carnívoro da América, sem adversário na natureza. "Nenhum império humano durou tanto", lembra Miranda.Ele agora está no fim pela mesma combinação de fatores que promoveu seu coroamento no fim do Pleistoceno - as influências do homem e do clima. Ainda é caçado no Brasil, até dentro de parques nacionais, como troféu esportivo, como dono de pele valiosa no mercado negro ou como inimigo número 1 da pecuária. Por isso, cada linha de sua história soa desde já a homenagem póstuma. Não deve ser à toa que a segunda parte do livro trata do "Jaguar Mítico" - que ficará em forma de esculturas pré-colombianas, pinturas rupestres, cerâmicas indígenas, cédulas de R$ 50 ou automóvel inglês. Como souvenir da incompetência humana.

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