O comércio na mira da política

A negociação de ambiciosos acordos parece ter feito do setor o alvo preferido de todo tipo de crítica à globalização

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Por Pedro da Motta Veiga e Sandra Polónia Rios
Atualização:

O comércio e os acordos comerciais foram trazidos por Donald Trump para o centro dos debates eleitorais nos EUA. Mais de 20 anos depois de assinado, o Nafta – acordo de livre-comércio firmado com o Canadá e o México – tornou-se o “bode expiatório” dos problemas econômicos dos EUA. Hillary Clinton é menos explícita, mas se distanciou da principal obra, na política econômica externa, de Barack Obama: a Parceria Trans-Pacífico (TPP).

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Na Europa, a retórica anticomércio se volta para o projeto de integração econômica, crescentemente criticado por partidos políticos, à direita e à esquerda do espectro político. Foi essa crítica que levou ao Brexit e é ela que alimenta as aspirações de partidos e governos populistas na região. Os acordos comerciais com países não europeus também são questionados, pondo em xeque as negociações em curso com os EUA e a ratificação do acordo com o Canadá.

Embora o discurso anticomércio possa assumir formas políticas surpreendentes – ninguém estava preparado para um candidato como Trump e para uma denúncia do Nafta a esta altura –, é certo que uma “onda” antiglobalização vinha se formando, nos países desenvolvidos, ao longo dos últimos anos.

Essa “onda” foi suficiente para praticamente bloquear, por cerca de dez anos, até o início da corrente década, negociações comerciais relevantes, seja na esfera multilateral – Organização Mundial do Comércio (OMC) –, seja em âmbito bilateral ou regional. Mas ela não produziu nenhum efeito relevante sobre a dinâmica propriamente econômica da globalização. Ao contrário, na primeira década do século, a globalização criou novos canais e modalidades de interdependência, muitos deles vinculados à emergência chinesa e à expansão dos serviços e da internet. 

Além disso, o crescimento do comércio resistiu à crise de 2008 e ao risco de uma escalada protecionista no final da década passada. Mesmo a recente desaceleração do crescimento do comércio internacional é mais bem explicada por fatores econômicos, como a queda dos preços das commodities, a redução do crescimento chinês ou pelo “amadurecimento” das cadeias globais de valor, do que pelo aumento de medidas protecionistas constatado pela OMC.

No entanto, na corrente década, a negociação de acordos comerciais ambiciosos e envolvendo os principais atores da economia mundial (exceto China) parece ter transformado o comércio e os acordos comerciais no alvo preferido de todo tipo de crítica à globalização.

É curioso que seja assim. Sem dúvida, o comércio e os acordos comerciais são um dos vetores da globalização e geram impactos distributivos sobre as sociedades envolvidas neste processo. Mas não são poucos os estudos que demonstraram que as inovações tecnológicas produzem impactos distributivos mais significativos do que o comércio. Além disso, para ficar na esfera econômica, a crise de 2008 e os riscos que cercam a economia mundial hoje estão relacionados à dimensão financeira da globalização muito mais do que à sua dimensão comercial.

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Além disso, se a globalização é percebida crescentemente como fonte de insegurança pelos cidadãos dos países desenvolvidos, essa percepção certamente remete a outras dimensões do processo: migrações, terrorismo, a crise dos refugiados na Europa, etc. Não há dúvidas de que os riscos associados à globalização se explicitaram com intensidade e simultaneamente nos últimos anos. E não é por acaso que as reações políticas a tais riscos se manifestam nos países desenvolvidos, onde os riscos se transformaram em recessões econômicas, fluxos de milhões de refugiados e atentados terroristas.

Com tantas variáveis e fontes de riscos associadas à globalização, é o caso de perguntar por que o comércio ganhou tanto destaque no discurso antiglobalização. Esta é uma boa pergunta para os cientistas políticos.

Enquanto não temos a resposta, consola-nos constatar que, embora o cenário externo nos afete negativamente por seus efeitos sobre nossos parceiros comerciais, a retórica anticomércio não faz sentido por aqui. E isso por uma razão muito simples: nossa política comercial e o “fechamento” de nossa economia nos mantêm distantes da globalização e, pois, dos seus custos e benefícios.

*São diretores do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes)