O lobby das armas

Artigo originalmente publicado no Estadão Noite Numa articulação às escuras, um grupo de parlamentares financiados pela indústria das armas brasileira realizou uma manobra para revogar o Estatuto do Desarmamento. Durante o período eleitoral, quando o foco estava totalmente deslocado das atividades do Congresso, o grupo articulou a criação de uma Comissão Especial para votar o PL 3722/2012, do deputado Peninha Mendonça (PMDB/SC), que propõe a revogação do estatuto e flexibiliza brutalmente a atual política de controle de armas de fogo no Brasil.

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Por Ivan Marques e Carolina Ricardo
Atualização:

Entre outros absurdos, o PL propõe a volta do porte civil de armas, o que significa que as pessoas voltarão a andar armadas nas ruas sem maiores restrições; acaba com a necessidade de renovação do registro de posse e, consequentemente, com a necessidade das pessoas passarem por novos exames psicológicos, técnicos e apresentarem novos atestados de antecedentes com periodicidade; altera de 6 para 9 o número de armas permitidas para um cidadão e aumenta o limite de munições por arma, que passa de 50 por ano para 50 por mês. Essa mudança permite que alguém com 9 armas possa comprar até 5.400 munições por ano.

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Fica muito claro que a tentativa da Comissão é aprovar o projeto sem debate no apagar das luzes desta legislatura, especialmente porque as seis audiências públicas previstas para o projeto foram canceladas e substituídas por apenas uma, a ser realizada no dia 26 de novembro em Brasília/DF, com uma composição extremamente favorável ao lobby das armas. Mais do que isso, os deputados pretendem votar o projeto em 10 de dezembro, menos de dois meses após as eleições. Além disso, a própria composição da Comissão é questionável, visto que dos 19 parlamentares titulares que a compõem, 10 foram comprovadamente financiados pela indústria das armas em 2010 ou neste ano. Sete membros titulares receberam recursos da indústria tanto em 2010 como em 2014. Nesse cenário, fica bastante claro qual interesse será o maior beneficiado pela aprovação do PL e não será o interesse público.

Os recentes dados publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública demonstram que mais de 70% das mortes por agressão no Brasil ainda são praticadas com arma de fogo. A flexibilização da lei que regula a circulação de armas de fogo no País é absolutamente descabida. O que é preciso é reivindicar que a lei seja implantada em sua integralidade e não o contrário.

Os estudos ‘Impactos do Estatuto do Desarmamento sobre a Demanda Pessoal por Armas de Fogo’ e ‘Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras’, realizados pelo IPEA e publicados em 2013, comprovam que o Estatuto do Desarmamento teve um importante impacto na retirada de armas de circulação e na diminuição da compra individual de armas no País. Também permitem concluir que a redução das armas em circulação impacta positivamente na redução dos homicídios. Ainda que isso não se dê de maneira uniforme em todo o Brasil, verifica-se que nos locais em que o estatuto foi aplicado de maneira mais sólida, os homicídios diminuíram. 

A proibição ao porte de arma é o principal eixo do estatuto, demonstrando que as escolhas do País priorizam ações que promovem a segurança pública construída coletivamente, refutando o argumento fácil e demagogo das soluções individuais. Os que propõem a revogação do estatuto sustentam que mais cidadãos armados contribuem para reduzir crimes. Tal argumento é falacioso e não tem comprovação científica. Ao contrário, mais armas circulando apenas contribuem para aumentar os homicídios. 

Dados da CPI do Tráfico de Armas produzidos pela própria Câmara dos Deputados em 2006 e pesquisa recente do Instituto Sou da Paz divulgada em dezembro de 2013, na qual foi analisada a totalidade das armas apreendidas em São Paulo em 2011 e 2012, comprovam que 78% das armas ilegais apreendidas pela polícia foram produzidas no Brasil. Além disso, 64% dessas armas ilegais apreendidas com criminosos haviam sido fabricadas antes de 2003, o que significa que sofremos hoje com armas que entraram em circulação legalmente num momento em que a legislação era mais frágil.

Fica muito claro, portanto, que o que motiva a revogação do estatuto são interesses econômicos de uma indústria que claramente não está preocupada em aumentar a segurança dos cidadãos. Estamos diante de um embate entre o direito coletivo à segurança pública e o direito particular de um segmento econômico que, embora legítimo, não pode prevalecer. * Ivan Marques é diretor executivo e Carolina Ricardo, analista sênior do Instituto Sou da Paz

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