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Por motivo de força maior

Ao impedir Liu Xiaobo de receber o Nobel, a China tenta apagar a premiação da memória, diz escritor

Por Carolina Rossetti
Atualização:

Enquanto Liu Xiaobo amanhecia na prisão em Jinzhou, nordeste da China, onde cumpre pena de 11 anos por "subversão ao Estado", uma cadeira vazia o representava na cerimônia do Nobel da Paz realizada sexta-feira na capital norueguesa, Oslo. Nenhum familiar foi autorizado a deixar o país para receber a láurea em nome do ex-professor de literatura de 54 anos e líder do manifesto pela democracia Carta 08.

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Tão logo recebeu a notícia do prêmio, a China deu início a uma cruzada para "apagar o Nobel de Liu da memória do povo chinês, assim como tenta apagar a própria história", lamenta o escritor chinês Ma Jian. A criação a toque de caixa de um prêmio alternativo ao Nobel, o Confúcio da Paz, para "representar a visão chinesa sobre a paz no mundo" é, segundo Ma Jian, "uma grande farsa e mais uma tentativa mesquinha de desviar a atenção". Em consequência da pressão de Pequim, 17 dos 63 países com representação diplomática na Noruega não compareceram à premiação. Na quarta, o Itamaraty rompeu o silêncio sobre a questão e anunciou que o Brasil estaria presente na entrega do Nobel.

Autor de Pequim em Coma, ficção baseada nos protestos estudantis da Praça Tiananmen de junho de 1989 - movimento político do qual Liu foi uma das lideranças -, Ma Jian diz que o povo chinês está paralisado pelo medo e vive num coma político "capaz de ver e ouvir, mas não de agir". Para ele, o Nobel de Liu tem um alcance político que extrapola os limites do indivíduo e é uma homenagem a toda uma geração oprimida pela mão autoritária do regime. Depois de ter o seu primeiro livro, Stick out Your Tongue (1987), banido pela censura por ser considerado "obsceno e vulgar", Ma Jian optou por um exílio voluntário em Londres, de onde concedeu, por e-mail, esta entrevista ao Aliás.

O governo chinês declarou que Liu Xiaobo é um criminoso e a outorga do Nobel da Paz, uma afronta. Como o senhor interpreta a atitude chinesa no episódio e a ausência de alguns países na entrega do prêmio?

A atitude do governo chinês desde o início tem sido repreensível, mas previsível. Essa é a maneira como a China se comporta agora. O país sabe que o mundo depende da economia chinesa, então se sente livre para pressionar não só os próprios cidadãos, mas também outras nações. O governo pensa que pode apagar esse prêmio, assim como tenta apagar a própria história da mente dos chineses. As consequências políticas disso dependem da vontade dos Estados democráticos de defender seus valores. E, francamente, tem sido muito desanimador observar como líderes políticos do Ocidente tão rapidamente se esquecem dos princípios que fundaram suas nações, como a liberdade e o respeito pelo indivíduo, e são tomados por uma ansiedade febril para fechar acordos comerciais com a China. É por isso que o Prêmio Nobel é tão essencial. Ele lembra o mundo do que está sendo sacrificado e esquecido nas negociações que se dão nessas cúpulas internacionais.

E o que dizer dos países que compareceram à cerimônia?

Eu aplaudo os países que fizeram frente à pressão chinesa, em particular nações como o Brasil, que se arriscam a sofrer uma represália econômica. Ao defender valores democráticos, esses países estão de fato ajudando a China a eventualmente adotar os mesmos princípios. Atitude corajosa e íntegra que será apreciada pela futuras gerações de chineses.

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Qual a conotação política de o Nobel da Paz ter sido dado a Liu Xiaobo?

Minha reação quando tive notícias de que Liu ganhara o prêmio foi de completa alegria. Nos últimos 20 anos ele tem feito, de modo pacífico, campanha pelas reformas necessárias na China, sacrificando a própria liberdade pela causa. Liu é merecedor da láurea. Espero também que o prêmio aumente a pressão para que ele seja libertado. Porém, quando soube da notícia, senti que o Nobel não era para um indivíduo apenas. Era uma acusação formal contra um sistema político que sufoca a liberdade, viola os direitos humanos e age com violência contra seu povo. O prêmio confortará milhares de vítimas da opressão política chinesa.

O livro Pequim em Coma narra a história de um homem ferido nos protestos de Tiananmen que acorda do coma dez anos depois, em uma China transformada. Tomando emprestada sua própria metáfora, é possível dizer que o chineses vivem num coma político?

Desde o massacre de Tiananmen, o povo chinês está paralisado pelo medo. Consegue ver e ouvir, mas não agir. Ou melhor, agem, mas apenas sob a condição de não pisar fora da linha. A eles foi negada informação correta sobre seu passado. A eles não é permitida a reflexão independente. Nada que questione o status quo. Vivem num limbo, ignorantes de sua história, incertos quanto ao futuro, preocupados apenas em saciar os desejos materiais imediatos. Isso não seja muito diferente de estar em coma.

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Como resistir a essa supressão da história imposta pelo Estado?

Na China, olhar para o passado é perigoso. Pode resultar em uma vida na prisão. O Partido Comunista, desde que tomou o poder, tem se esforçado para controlar a história, reescrevendo-a ou simplesmente apagando grande parte dela, recusando-se a encarar as tragédias que infligiu à nação, além de perseguir aqueles que tentam tornar públicos esses eventos. É compreensível, então, que a maioria dos chineses coopere com o governo e abrace o esquecimento. Mas, apesar dos riscos, ainda há pessoas que recusam o silêncio - como os ativistas que assinaram com Liu Xiaobo a Carta 08, lembrando o governo das violações de direitos humanos do passado e clamando por mudança. As Mães de Tiananmen, que todo ano se reúnem para rememorar o massacre de 4 de junho e exigir desculpas públicas, são também pessoas que se recusam a esquecer. Esses indivíduos corajosos nos dão esperança de um futuro melhor.

O que não deve ser esquecido daqueles dias de luta na Praça Tiananmen?

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Minha mente está cheia de imagens daqueles dias - a multidão, as bandeiras vermelhas, os líderes estudantis gritando em megafones, e, claro, as trágicas cenas do massacre. Daquele episódio, o povo chinês aprendeu que, se quer sobreviver, precisa manter a boca fechada. Aprendeu que democracia, liberdade e felicidade não podem ser conquistadas da noite para o dia e a luta é longa e árdua. Mas a lição que o governo quer que esqueçamos é que, quando nos unimos sob um propósito comum e nos levantamos contra os opressores, é possível gerar uma força tamanha que muda o curso da história. Lembro-me de uma cena, não tão dramática, mas que me acompanha desde então e tem grande significado para mim. Num dia da ocupação estudantil da praça um comerciante apareceu com um caminhão cheio de garrafas de água mineral que queria dar para os manifestantes. Escalei a carreta até chegar ao topo e gritei para a multidão pedindo voluntários para ajudar na distribuição da água. Imediatamente, foi formada uma fila imensa de senhoras idosas, estudantes, comerciantes, crianças. Estavam todos desesperados para ajudar de alguma maneira, mesmo que singela, de mudar a China para melhor. Fiquei emocionado com aquela demonstração de solidariedade, e essa imagem, mais que as de tanques do Exército e morte, é a primeira coisa que vem à minha mente quando olho para 1989.

A liberdade de expressão é uma das demandas da Carta 08 encabeçada por Liu. O sr. mesmo teve livros proibidos, em particular seu romance sobre o Tibete, Stick out Your Tongue. Por que a palavra escrita é tão temida por regimes autoritários?

Mesmo rejeitado pela minha pátria, tenho claro que sou um escritor chinês. E boa literatura é poderosa porque toca em verdades interiores. Ela fala da condição humana, no passado e no presente. A literatura que propaga mentiras não dura, assim como ditaduras também têm seu fim. O alicerce do governo chinês, base de toda sua força e poder, é justamente a mentira. O governo pode proibir palavras inconvenientes e criar uma linguagem que distorça e ofusque. Tem usado termos como "inimigo do povo", "trabalhador modelo", "patriota", "poluição espiritual" e "socialismo à chinesa" precisamente para tornar o povo subserviente. Em autocracias, a literatura é quase inevitavelmente subversiva, mas ser banida não deve ser por si só mérito literário na China. Livros devem ser julgados pelo insight que oferecem, assim como a beleza e força de sua linguagem. Não sei se a literatura tem capacidade de mudar qualquer coisa, mas pelo menos encoraja as pessoas a pensar, a se questionar e a entender melhor as próprias vidas.

O vice-chanceler da China, Cui Tiankai, criticou a Fundação Nobel. E indagou: "Que imagem vocês estão querendo passar do povo chinês?" Que imagem o senhor acha que Ocidente tem da China?

O mundo ocidental não deve cometer o erro de confundir o governo chinês com o povo chinês. Se o Ocidente está olhando para o regime, suponho que deva ter uma imagem de tirania, de uma forma de governar obsoleta, que se distancia dos valores ocidentais. Já o povo chinês não deve ser olhado sob a mesma ótica nem julgado de modo severo. Mesmo que muitos apoiem a perpetuação do regime, eles próprios são vítimas dele e têm sido privados de conhecimento e oportunidades necessários para sustentar uma opinião informada e consciente sobre o sistema político.

O crescimento econômico chinês tem sido acompanhado pela adoção de estilos de vida cada vez mais ocidentais. Como o senhor vê, por um lado, a rápida modernização da China e, por outro, a necessidade de se preservar a cultura, história e tradição milenar do país?

Hoje a China é mais capitalista que o Ocidente, mas as pessoas ainda não foram libertadas da opressão do regime. Eu cresci numa China que vivia sob uma ditadura maoista, não muito diferente do que é a vida na Coreia do Norte hoje. A juventude era alimentada com propaganda do partido e não sabia nada do mundo exterior, além de haver "vítimas do capitalismo" esperando que as resgatássemos. Nos últimos dez anos, as grandes cidades chinesas mudaram além de qualquer reconhecimento. A vida urbana foi transformada de maneira drástica, uma mudança que levou centenas de anos para se consolidar no Ocidente. Tem sido difícil para muitos chineses ajustar o passo e acompanhar o progresso. Em Pequim, por exemplo, a maioria das pessoas morava em casas com quintal, muitas vezes divididas com outras famílias, ou então em blocos de apartamentos de poucos andares e de baixo custo. Grande parte dessas construções foi demolida. Comunidades foram esfaceladas. As vielas antigas sumiram. Esquinas antigas, onde as pessoas podiam parar e se reunir para uma conversa, comprar panqueca dos vendedores ambulantes ou passear com seus pássaros em gaiolas, não estão mais lá. Não existe mais um sentido de pertencimento, e aquilo que fazia das cidades chinesas um lugar único e especial desapareceu.

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Entrevista

MA JINESCRITOR CHINÊS, AUTOR DE PEQUIM EM COMA (RECORD) E STICK OUT YOUR TONGUE (CHATTO & WINDUS)

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