Vizinho novo

Análise publicada originalmente no Estadão Noite Mauricio Macri foi eleito na Argentina por margem apertada (51,4% dos votos contra 48,6% de Daniel Scioli; pouco mais de 700 mil votos) e terá pela frente quatro anos de desafios. Três pontos intimamente conectados são relevantes ao Brasil, seja pelas dificuldades da política argentina que podem afetar as relações bilaterais, seja pelo papel que o vizinho passará a ter na região. O cenário é interessante. É o primeiro presidente de oposição desde 1983 a ter vencido na província de Buenos Aires, chave para governar - e tendo como trunfo o fato de poder usar sua liderança como parte do jogo político das bases, ao negociar com prefeitos da região metropolitana da capital. Entretanto, Macri enfrentará um Congresso com o qual não conta com ampla maioria. Depois dos fracassos entre 1999 e 2001, quando a oposição não conseguiu manter-se no poder, o novo presidente tem como principal meta na política nacional conformar um governo de coalizão, abandonando o hiperpresidencialismo presente durante os anos Kirchner. A negociação promete ser dura: Macri tem o apoio de 12 de 24 governadores; se irritá-los, dentro das divisões federais da política argentina, perderá governabilidade; deverá negociar a incorporação e acomodação de partidos de centro-esquerda em um governo de centro-direita; a dissidência peronista ganhou força com os 5 milhões de votos de Massa e certamente pedirá voz; além dos kirchneristas que saíram enfraquecidos da disputa e que oferecem oportunidades-chave de formar alianças legislativas. Basicamente, Argentina se vê na mesma situação que o Brasil há alguns anos. Se Macri não aprender a se comportar como um Lula, suas chances de passar qualquer lei e produzir reformas serão diminutas. Isso significa implantar no sistema argentino um driver brasileiro de governabilidade que é estranho ao sistema político do país, uma vez que terá que construir alianças interpartidárias, num cenário no qual as dificuldades históricas se dão em como construir alianças intrapartidárias. De saída, ao nomear na semana passada um gabinete tecnocrata e conservador, Macri não dá sinais de que vá se comportar como ‘um presidente de coalizão’. Para que a economia volte a ser competitiva, o peso argentino precisa ser desvalorizado. A promessa de fazê-lo ‘desde o momento zero’ tem gerado amplo debate sobre em qual velocidade e por quanto tempo o câmbio argentino estará depreciado. O Banco Central Argentino dá conta de que as reservas do país são de 26 bilhões de dólares (uma queda de 19,5% em comparação a 2104). Todavia, analistas de mercado apontam que o valor não é líquido ou capaz de fazer frente aos compromissos do país - principalmente se descontados os fluxos dos acordos com os chineses. Isso indica a necessidade do novo presidente ser agressivo. De modo simples: uma política de desvalorização duradoura. Caso mantenha-se estável no governo, este segundo desafio promete tirar o sono do novo ocupante da Casa Rosada. Os ajustes macroeconômicos também têm fortes consequências fiscais para os governadores provinciais, incendiando ‘a política dos governadores’ (como no Brasil entre 1988 e 1995). Significa que Macri se colocará em uma situação de difícil saída, para um presidente que não é peronista, e tampouco possui recursos econômicos em abundância para manipular (e sobreviver ao) o jogo federativo. Uma queda abrupta do valor da moeda argentina certamente traria um aumento de competitividade às exportações do país, especialmente aos produtores de soja e de alguns produtos industriais negociados com o Brasil. Fatalmente, a Argentina aprofundará seu tom renitente nas negociações comerciais (com alguma razão), o que poderá provocar choques com o Brasil ao competirem por mercados globais - é conhecida a não-complementaridade de ambos os mercados. A rota de colisão parece ser inevitável. Macri já sinalizou que está disposto a chacoalhar o Mercosul. Prometeu olhar de muito perto as próximas eleições na Venezuela - indicando que pode invocar a mesma cláusula democrática que suspendeu o Paraguai e trouxe a Venezuela ao bloco. A punição a Maduro seria uma estaca no coração do bolivarianismo, já frágil e com pouco suporte internacional, além de uma cisão profunda na política regional. Mais, forçará Dilma Rousseff a abandonar sua política externa inercial e tomar posição. A Argentina, depois de muitos anos alijada do cenário internacional, sobretudo financeiro, precisa retomar os laços, de modo positivo, junto às cadeias globais de valor, buscando novas oportunidades de crescimento. Macri, ao nomear Susana Malcorra (Chefe de Gabinete do Secretário Geral da ONU), como sua nova chanceler, dá sinais de que o vizinho do Prata terá uma política externa, ou em alguma medida, uma política externa menos míope que a do kirchnerismo. É cedo para dizer se Macri ocupará o vácuo de liderança que a dupla Lula-Chávez deixou na região - o objetivo primordial é terminar seu mandato. A piada sobre uma argentinização do Brasil e um abrasileiramento da Argentina (pelo menos na política) está acontecendo.

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Por Fabrício H. Chagas Bastos e Tracy B. Fenwick
Atualização:

* Fabrício H. Chagas Bastos é professor de Relações Internacionais e Estudos Latino Americanos da School of Politics and International Relations da Australian National University e Endeavour Research Fellow do Australian National Centre for Latin American Studies da mesma instituição. Doutor pela Universidade de São Paulo. E-mail: fabricio.chagasbastos@anu.edu.au

** Tracy B. Fenwick é professora de Ciência Política da School of Politics and International Relations da Australian National University e Diretora do Australian Centre for Federalism da mesma instituição. Doutora pela Universidade de Oxford. E-mail: tracy.fenwick@anu.edu.au

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