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Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, professor do IDP, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor executivo da IFI. Felipe Scudeler Salto escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|O risco de um monstrengo tributário

É ilusão falar na ‘multiplicação dos pães’ do novo IVA, que seria tão bom a ponto de gerar um bolo de recursos adicionais para encher o fundo de desenvolvimento

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O pacto federativo está em frangalhos. Uma reforma tributária abrangente depende do sacrifício de diferentes atores e, portanto, do seu convencimento. É melhor avançar por etapas, sendo a primeira a migração do ICMS ao destino, com o fim dos incentivos tributários.

O ICMS é um tributo estadual do gênero valor adicionado (IVA), cobrado na origem e no destino da operação. Há duas questões centrais em jogo no debate sobre a migração do ICMS para o destino, proposta já bastante ousada, custosa e demandante. A primeira é como compensar os Estados que perderão a caneta dos incentivos tributários. A segunda é como evitar que essa compensação simplesmente replique as ineficiências atuais. Por hipótese, se o novo sistema previr uma montanha de mais de duas centenas de bilhões para políticas setoriais, qual terá sido a vantagem do novo IVA, seja dual (federal e subnacional), seja nacional, ou mesmo da minha proposta, de começar pelo ICMS no destino?

Nas principais propostas de IVA que estão na mesa, a ideia é que os benefícios do ICMS desapareçam, paulatinamente, à medida que o novo IVA subnacional (junção do ICMS com o ISS, este municipal) substitua os antigos impostos. Além disso, pretende-se criar um fundo de desenvolvimento regional com cerca de R$ 50 bilhões. Um erro, pois é preciso acabar com os incentivos em prazo curto. O fundo de desenvolvimento, por sua vez, não pode manter a lógica de benefícios pulverizados. Difícil? Sim, mas aí estaria uma reforma de fato.

Estamos numa situação na qual se aplica o teorema da impossibilidade de Arrow. É que a soma das preferências individuais leva à impossibilidade de uma decisão coletiva razoável. Para ter claro, cada Estado quer segurar o seu quinhão de incentivos, fabricados em cima da alíquota aplicada na origem. Natural, dada a incerteza, mas péssimo para a coletividade: menor crescimento econômico; sistema tributário ainda mais complexo; e novos penduricalhos e debilidades. Quanto ao modelo de governança proposto, espécie de agência centralizadora a normatizar e a controlar a arrecadação, seria uma aventura para qualquer Estado. O órgão consistiria numa aberração federativa. Os governadores teriam de pedir a bênção da agência para cuidar do seu próprio imposto. Um disparate.

Vejo dois caminhos. O Congresso poderia desenhar, junto com o Executivo, uma proposta que explicitasse os sacrifícios individuais: os Estados aceitariam menores compensações; a União encontraria os fundos para realizá-las; e os setores produtivos contrários à reforma aceitariam pagar mais imposto, no curto prazo, tendo em vista os ganhos econômicos futuros decorrentes da simplificação. A outra possibilidade seria avançar por etapas na reforma tributária. A primeira saída é um sonho de uma noite de verão no contexto atual. Torço para que essa conjuntura mude, mas estou pessimista no tema. Afinal, busca-se atender a muitos pleitos, no varejo, em detrimento das soluções no atacado.

Em 2022, quando fui secretário da Fazenda de São Paulo, propus ao governador Rodrigo Garcia que defendesse a migração do ICMS para o destino, sem mexer com o ISS num primeiro momento. Em paralelo, apoiar a junção do PIS e da Cofins, proposta madura.

Por meio de resolução do Senado, poder-se-ia alterar a dupla alíquota interestadual, de 7% ou 12% (dependendo da direção do comércio) para 0%, em três anos. Isso requereria um esforço enorme de articulação política e negociação com os Estados, que teriam de aceitar a troca dos incentivos por políticas de desenvolvimento com menos recursos e orientadas a investimentos em infraestrutura. A meu ver, essas políticas teriam de ser aprovadas de modo colegiado, constar dos Planos Plurianuais dos Estados, dos municípios e da União, e ser sempre avaliadas (ex ante e ex post).

A articulação dos interesses individuais numa direção boa para a coletividade demanda liderança central forte no Congresso e no Executivo. No curto prazo, não nos iludamos, haveria custos para todos. Na outra margem do Rubicão, aí sim, avistaríamos terra fértil.

Estados exportadores líquidos perderiam receita, no começo, mas ganhariam, depois, com a redução das distorções alocativas. Estados mais pobres teriam um novo instrumento de política de desenvolvimento. A União teria de garantir o dinheiro. É ilusão falar nesta “multiplicação dos pães” do novo IVA, que seria tão bom a ponto de gerar um bolo de recursos adicionais para encher o fundo de desenvolvimento. Balela. Essa fatura é da União.

A “fábula”, como disse o ex-secretário da Receita Everardo Maciel em artigo no Estadão, precisa ser desmontada. Não existe reforma tributária em que todos ganham e não há custos; que tenha o condão de resolver todos os problemas com o tal cashback, alíquotas especiais ou regulamentações posteriores via lei complementar.

Reformas importantes só passam no nosso Congresso sob a liderança direta do presidente da República. Foi assim na Lei de Responsabilidade Fiscal, com Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Agora, o comandante ainda não apontou um caminho, mas o monstrengo já está em gestação.

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ECONOMISTA-CHEFE E SÓCIO DA WARREN RENA, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO E O PRIMEIRO DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI

Opinião por Felipe Salto

Economista-chefe e sócio da Warren Investimentos, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo

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