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Livro analisa papel da pintura e da música na obra de Proust

Último ensaio do professor Roberto Machado mostra como a arte marca presença em seu romance ‘Em Busca do Tempo Perdido’

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho

Em novembro, mês do centenário da morte do escritor francês Marcel Proust (1871-1922), um livro que acaba de ser lançado, Proust e as Artes (Todavia), lembra a dívida que o autor de Em Busca do Tempo Perdido tinha com a pintura e a música. O autor desse estudo sobre a presença das duas artes nos sete volumes da saga proustiana, o professor recifense Roberto Machado (1942-2021), não viveu para ver o livro publicado. Morreu em decorrência de uma leucemia, em maio do ano passado, aos 79 anos, dez deles dedicados ao estudo da monumental obra de Proust.

O resultado é não só um levantamento dos artistas que serviram de modelos aos personagens de Em Busca do Tempo Perdido, mas das obras que inspiraram os retratos de suas inúmeras criações. Essa relação, é justo lembrar, já foi objeto de um outro estudo feito pelo norte-americano Eric Karpeles, Paintings in Proust (Thames & Hudson, 2008).

Retrato do escritor francês Marcel Proust  Foto: Acervo Estadão

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Karpeles contabilizou nada menos que duas centenas de pinturas, desenhos e gravuras citados por Proust em seu luxuoso volume com 206 ilustrações e mais de 300 páginas. Seu livro, como anunciou a editora britânica no lançamento, pretendia ser um guia para a leitura de Em Busca do Tempo Perdido. E, de fato, ajudou o leitor ao revelar os retratos que Proust tinha em mente ao criar personagens imortais como a sedutora Odete de Crécy (baseada na figura de um afresco de Botticelli) ou o pintor Elstir (inspirado no americano James Whistler, um dos pintores preferidos de Proust).

Esses dados aparecem igualmente no livro de Roberto Machado, mas a brochura não traz reproduções das obras citadas por Proust – a única ilustração é a da capa, que traz a Vista de Delft (c. 1660-1) pintada pelo holandês Vermeer, considerado por Proust o mais belo quadro de todos os tempos. É um pouco frustrante a ausência das reproduções, pois o próprio Proust definiu sua novela como “uma pintura” ao pedir ao amigo (nem tanto) Jean Cocteau que buscasse um editor para o primeiro volume de sua obra-prima, em 1913 (No Caminho de Swann seria publicado no final desse ano bancado pelo próprio autor).

A ausência de ilustrações é compensada pelo texto bastante esclarecedor de Roberto Machado, aluno de Foucault e professor de Filosofia da UFRJ. Ele deixou o Brasil após o golpe militar de 1964, voltando em 1970. Nos anos 1980, sendo orientado por Deleuze em suas pesquisas de pós-doutorado, Machado acabaria tendo um papel enorme na difusão de sua obra – é dele a tradução de seu Proust e os Signos, lançado este ano pela Editora 34.

Tudo em Proust é “premeditado”, segundo Machado, da composição rigorosa ao estilo circular, da fragmentação aparente à ordem profunda do projeto

Seu Proust e as Artes é, portanto, marcado pela visão filosófica dos seus mestres: tudo em Proust é “premeditado”, segundo Machado, da composição rigorosa ao estilo circular, da fragmentação aparente à ordem profunda do projeto. Seu objetivo é mostrar que há uma estética inventada na criação romanesca de Proust ligada a um sentimento metafísico. Sendo ao mesmo tempo autor e narrador do livro (que se chama Marcel), Proust só descobre no final dele sua vocação de escritor. Machado mostra que a literatura não realista do francês é tão comprometida com o objeto de sua contemplação (mediada pelo olhar do crítico inglês John Ruskin) como sua noção de música foi marcada pelas concepções de Schopenhauer e de Wagner.

A arte, dizia Proust, faz ver o mundo de maneira diferente, independentemente do princípio da razão, para citar mais uma vez Schopenhauer. Assim, ao conhecer Odette, Swann se impressiona com a semelhança com a figura de Séfora, esposa de Moisés, num afresco de Botticelli (As Filhas de Jetro). Talvez Odette não fosse tão bela assim, mas a evocação da obra artística a torna digna de veneração.

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ela 'Vista de Delft', de Vermeer, a mais bela pintura segundo Proust  Foto: Museu de Haia

Das 1,2 milhão de palavras que compõem Em Busca do Tempo Perdido, milhares delas são usadas para construir metáforas e provar que só por meio da arte podemos escapar de nós mesmos e chegar ao outro. Os artistas, enfim, nos mostram a vida de outro ângulo, mais vivo e menos medíocre que o cotidiano enfadonho.

A uma certa altura da vida, o narrador Marcel conclui que perdeu seu tempo e que só a beleza que experimentou pode resgatar algo que ficou no passado – como na passagem em que redescobre o gosto da infância ao tomar chá acompanhado das madeleines que sua tia Léonie lhe oferecia em Combray.

Não é o único momento em que o verdadeiro Marcel se encontra com sua criatura. Em outra passagem, uma das mais emocionantes do livro, Bergotte, um escritor que exerce influência decisiva na escolha da carreira do Marcel narrador, o fictício, fica sabendo que a Vista de Delft de Vermeer, tela do acervo do Mauritshuis de Haia, está em exposição em Paris. Em estado terminal, Bergotte faz uma refeição rápida e, desafiando o destino, faz a visita e cai morto diante da tela. Vale lembrar que, em 1921, Proust, com saúde frágil, arriscou igualmente a vida para ver a tela de Vermeer numa exposição temporária no Jeu de Paume, em Paris.

Debussy retratado por Gibran Khalil Gibran  Foto: Acervo Estadão

O episódio da morte de Bergotte em A Prisioneira, quinto volume de Em Busca do Tempo Perdido, é explorado no livro de Roberto Machado para mostrar que, diante de um detalhe da tela de Vermeer, Bergotte/Proust sente que não atingiu o patamar do pintor na literatura. Autoavaliação injusta, evidentemente.

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Já com relação à música, observa Machado, Proust não se interessava pelos aspectos técnicos da teoria musical – daí ter criado um personagem, o músico Vinteuil, usando fragmentos de Saint-Saëns, César Franck e Debussy, entre outros. Proust “roubava a torto e a direito para criar seus personagens e até mesmo as obras de arte imaginárias do seu romance”, escreve Machado, citando, no caso da pintura, a tela Porto em Carquethuit, do pintor fictício Elstir, também um cruzamento de vários pintores admirados por Proust (Whistler, Monet, Moreau e Turner, entre eles).

Elstir, não é nenhuma surpresa, surge como o artista mais preparado intelectualmente no romance de Proust, embora seja um personagem com menor participação no conjunto, que elege Charles Swann, um aristocrata, como protagonista do primeiro livro. Em todo caso, o zen impressionista Elstir tem um papel essencial na vida do narrador, ao apresentar Marcel (o personagem) à sua futura paixão, Albertine.

'Em Busca do Tempo Perdido', de Proust, foi adaptado para a linguagem dos quadrinhos  Foto: Stéphane Heuet

O que chama imediata atenção no leitor, ao ler Sodoma e Gomorra, quarto volume do romance, publicado meses antes da morte de Proust, é a maneira original como o escritor relaciona a arte do passado com seus contemporâneos – e nisso entra seu profundo conhecimento de arte, que provou como crítico e ensaísta. Karpeles chamou Proust de pós-moderno, justificando que ele reverenciava Van Dick, Carpaccio e Picasso com a mesma paixão, identificando uma justaposição de linguagens entre os clássicos e seus contemporâneos. O próprio relacionamento com os cubistas aparece refletido na montagem algo fragmentada das memórias involuntárias de Proust, que Machado descreve como “experiências intensas e plenas, instantes de comunhão total com as coisas” (ele detectou por volta de 30 dessas experiências no romance, além do chá com madeleines).

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Como se sabe, o narrador fictício de Em Busca do Tempo Perdido, Marcel, relembra como foi introduzido nos salões da alta burguesia e conheceu aristocratas como Swann, a duquesa de Guermantes e o barão de Charlus, concluindo que “desperdiçou na mundanidade os dons de seu espírito”, para citar uma observação de Roberto Machado. Um personagem marcado pela decadência, o barão de Charlus surge totalmente arrasado na última parte, O Tempo Redescoberto. Ambos, Swann e o barão, reduzidos a nada, poderiam ter sido salvos pela arte, mas “fracassaram, em assumir suas vocações, em se tornar criadores”. Esse lamento pela passagem do tempo e pela impossibilidade de congelá-lo, conclui Roberto Machado, já se encontra em Jean Santeuil, primeiro e inacabado romance de Proust. No fundo, a passagem do tempo, conclui o professor, só traz a degradação. Só a arte resiste a ela, parece dizer Proust.

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