Novo livro explica a popularidade de Miss Marple, de Agatha Christie

Personagem da romancista inglesa ganha nova análise que ressalta suas qualidades morais, como compaixão e a sensibilidade

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Por Rhys Bowen

THE WASHINGTON POST - Muitas vezes me pergunto por que os livros de Agatha Christie são tão populares. Ela já vendeu mais livros do que qualquer outro autor. E, no entanto, ninguém pode dizer que seja uma grande escritora, se comparada a, digamos, Hemingway, Shakespeare ou Dickens. Ela sabe contar uma boa história, mas não toca nossas emoções nem nossas almas. Não se chora pelo corpo encontrado na biblioteca.

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Sua prosa é imprecisa, suas configurações básicas e seus personagens são, na maioria, unidimensionais. Podem ser resumidas com brevidade: o filho inútil, a solteirona intrometida, a filha amarga e ignorada, o pai valentão. Hercule Poirot, sua criação mais famosa, é uma caricatura. Sabemos que é belga (embora se comporte como um francês), tem cabeça abobadada e bigodes luxuriantes. É arrogante e vaidoso.

Fora isso, não sabemos nada – sua origem, seus amores, suas perdas, o que o faz chorar. Ele trata Hastings muito mal e se delicia em tirar sarro de meros mortais. Não é o cara mais simpático do mundo.

Joan Hickson como Miss Marple, icônica personagem de Agatha Christie Foto: PBS

Mas aí chegamos a Miss Marple, outra personagem constante de Christie. Esta senhora inspirou várias encarnações teatrais, desde a calorosa Margaret Rutherford até a perfeitamente discreta Joan Hickson. E agora ela chamou a atenção de um grupo de autoras de best-sellers, cada uma tentando sua versão de Miss Marple em uma antologia chamada simplesmente Marple, lançada em 13 de setembro. O ilustre grupo conta com Kate Mosse, Val McDermid, Elly Griffith, Lucy Foley e Ruth Ware. Cada autora captura Christie – e Marple – com perfeição e também exibe um pouco de seu toque particular. A autora feminista Naomi Alderman, por exemplo, descreve um personagem masculino pomposo como alguém que tem uma voz que “explodiu do fundo da barba”. Mais tarde, ele é encontrado de bruços em cima do prato de carne assada, morto por overdose.

Então, o que Marple tem que Poirot não tem? Primeiro, ela é alguém com quem podemos nos identificar. Seria bom tomar um chá com ela. Talvez seja uma das poucas personagens palpáveis e elaboradas de Christie: a consumada solteirona inglesa, vivendo numa típica vila inglesa, com suas fofocas e intrigas. Marple, na verdade, representa toda uma geração de mulheres cujas esperanças de casamento foram frustradas pela perda de mais de um milhão de jovens nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Como jovem de boa família naquela época, ela foi criada para arranjar um bom casamento e não estava preparada para muito mais que isso. Ela claramente tem um cérebro excelente. Em outras épocas, poderia ter ido para a universidade e conseguido uma profissão lucrativa. Em vez disso, ela tem de se contentar com seu jardim e boas obras na paróquia. Não é à toa que dedica seu cérebro e aguçados poderes de observação à resolução de crimes.

A grande vantagem de uma solteirona idosa é que ela é invisível. Ninguém pensa que ela é importante quando ela está lá sentadinha no saguão de um grande hotel com seu tricô. E aí ela ouve, observa e percebe pequenos detalhes que a polícia ignora: unhas roídas na garota errada, um comportamento que parece estranho à personagem. E ela faz comparações com personagens de seu vilarejo: o brilho de triunfo nos olhos de um vigarista a lembra do rosto do coroinha que ganhou na bolinha de gude. Aquele sorriso que ninguém notou. Só ela.

Kenneth Branagh é o detetive Hercule Poirot nos filmes baseados na obra de Christie  Foto: Rob Youngson/20th Century Studios

Miss Marple pode parecer frágil e desimportante, mas não é covarde. Na verdade, demonstra uma força tranquila, como quando enfrenta um milionário e declara: “Eu sou sua Nêmesis”. E uma persistência com a polícia que acaba vencendo até os mais resistentes. Ela também incorpora o que Hercule Poirot parece não ter: compaixão e compreensão da fraqueza humana, junto com um forte senso de justiça. Agatha Christie a entendia com clareza. Se Poirot era simplesmente sua versão de Holmes e Watson, um veículo para resolver um quebra-cabeça, Miss Marple tinha um propósito: ser uma pessoa cuja tarefa era corrigir o que havia de errado no seu universo.

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É interessante que Miss Marple faça sua aparição no conto ‘The Tuesday Night Club’ (mais tarde publicado em The Thirteen Problems) exatamente no momento em que Agatha Christie estava passando por uma crise na vida pessoal. Seu adorado marido queria o divórcio. Christie encenou seu dramático desaparecimento no ano anterior ao lançamento desse livro na Royal Magazine, presumivelmente quando o estava escrevendo. Então, talvez Miss Marple estivesse expressando como Christie se sentia na época: uma mulher impotente, esquecida, invisível, ansiando por justiça. A própria Christie claramente tinha um cérebro extraordinário e foi autorizada a trabalhar numa farmácia durante a guerra. Mas também ela estava confinada ao papel de dona de casa, presa dentro do lar enquanto Archie Christie flertava no campo de golfe. Não é à toa que ela queria uma personagem que fizesse tudo certo com o mundo.

No novo livro Marple, ninguém tentou mostrar a detetive como uma jovem brilhante, nem fazendo algo ousado na Primeira Guerra Mundial. Em cada conto, ela está como a conhecemos: gentil, frágil, idosa e sábia. Ela faz tricô. E pisca muito – o que não me lembro de ver a verdadeira Miss Marple fazendo. Alguns dos contos acontecem na vila natal de Miss Marple, St. Mary Mead, ou vilarejos ingleses semelhantes, enquanto outros locais são mais exóticos. Alyssa Cole a leva para Nova York, Jean Kwok para Hong Kong e Elly Griffiths monta sua deliciosa peça no sul da Itália. Todas as histórias são divertidas, intrigantes, mas devo dizer que descobri o culpado na maioria delas, o que não conseguia fazer nos romances de Christie.

A escritora britânica Agatha Christie, que criou personagens inesquecíveis, como Poirot e Miss Marple Foto: Acervo Estadão

Faz parte do apelo, claro: descobrir o assassino antes do final do livro. Outra razão pela qual Christie continua tão popular é que suas histórias parecem protegidas do tempo e do lugar de nossa realidade. Sua aldeia é aquela com a qual sonhamos, onde todos se conhecem e se encontram para tomar um chá: um lugar ao qual pertencemos. Seus crimes nunca são brutais: era espertos e toda e qualquer violência acontecia fora das páginas. Miss Marple às vezes tem grande simpatia pelo perpetrador. E, no final, tudo se acerta. O crime é resolvido, o assassino é levado à justiça, a tranquilidade retorna àquele universo. Não é isso que todos nós desejamos agora? Um lugar onde nos sintamos em casa, seguros e tranquilos?

Tenho de confessar que, quando estou estressada, a primeira coisa que procuro é um romance de Agatha Christie (tenho tudo o que ela escreveu) e rezo para que não consiga lembrar muito rapidamente quem era o culpado. Esperemos que esta nova e divertida coleção de algumas de nossas escritoras favoritas atraia um novo grupo de leitores para a formidável Miss Marple.


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Rhys Bowen é autora de duas séries históricas de mistério, bem como de vários romances históricos, o mais recente é The Venice Sketchbook. Britânica de nascimento, hoje ela divide seu tempo entre a Califórnia e o Arizona.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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Marple: Twelve New Mysteries

Agatha Christie, et al

William Morrow - 384 páginas - US $28.99

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