O Projeto de Lei 3035/2020 é desnecessário, se apresenta como um fortalecimento da educação inclusiva, mas promove a segregação de alunos com deficiência porque centraliza a proposta nos estudantes com deficiência intelectual, principalmente autistas, e não abrange deficiências físicas, psicossociais e sensoriais, além de misturar especialidades da saúde na educação e reforçar o modelo médico da deficiência, algo ultrapassando e que precisa ser abandonado em todas as políticas públicas voltadas à população com deficiência.
Desde a chegada ao plenário da Câmara, no último dia 15 de agosto, e à colocação em votação urgente, cresceu o movimento de repúdio ao PL, originalmente apresentado pelo deputado Alexandre Frota, mas que reúne atualmente textos de 15 projetos diferentes, em uma espécie de 'Frankenstein legislativo'.
Um dos problemas é a ausência de debates com a população com deficiência. Na última quinta-feira, 24, notas públicas foram divulgadas com críticas ao projeto e pedindo mais discussão, entre as quais estão manifestações de instituições como a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) e a Associação Nacional para a Inclusão das Pessoas Autistas (ANIA-BR), e da Comissão Nacional da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (CNPEEI).
No mesmo dia, a equipe da senadora Mara Gabrilli publicou uma "breve análise" do PL 3035, destacando pontos fortes e fracos.
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Mara Gabrilli - Análise PL 3035/2020Documento
Nota da CNPEEIDocumento
Nota ANIA-BRDocumento
Nota ABPEE"Após duas semanas de muitas discussões acaloradas da senadora Mara com o relator do PL, o deputado Duarte Jr. (PSB-MA), e com a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), houve mudanças no relatório e ontem (quarta-feira, 23), eles se convenceram da importância e da necessidade de se realizar audiências públicas sobre o projeto e pediram sugestões de participantes. Estamos aguardando o agendamento", destacou Gabrilli.
Nesta segunda-feira, 28, o deputado Duarte Jr. enviou um áudio ao blog Vencer Limites e à coluna Vencer Limites na Rádio Eldorado.
Um dos pontos do PL mais criticados é a previsão do 'atendimento terapêutico' dentro da sala de aula, mas sem deixar claro quem paga por isso.
Carolina Videira, fundadora da Turma do Jiló, ONG que implementa programas de educação inclusiva em escolas públicas, afirma que a atual legislação nacional, no que diz respeito à educação inclusiva nas escolas, já é bastante qualificada e robusta, tendo como grande referência a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
"O que o ensino inclusivo do País mesmo é o cumprimento das leis em vigência. O projeto de Lei n° 3.035 traz pontos que permitem entendimento totalmente diferente da lei atual e, caso sancionado, vai gerar ainda mais interpretações equivocadas", destaca a especialista.
"Considero louvável o interesse, por meio de um projeto de lei, de fortalecer a educação especial e inclusiva no País, pois ainda existem instituições de ensino que burlam diretrizes que determinam a presença de pessoas com deficiência no âmbito escolar. No entanto, o projeto de lei possui diversos pontos vagos que certamente trarão graves retrocessos no ensino inclusivo conquistado nos últimos anos. Um dos pontos mais conflitantes do projeto se refere à falta de clareza quanto à presença do profissional de Atendimento Educacional Especializado (AEE) no acompanhamento de uma pessoa com espectro autista dentro da escola. A PL fala tão somente em 'Acompanhante Terapêutico", possibilitando que outros tipos de profissionais ocupem essa posição tão essencial para o desenvolvimento inclusivo na escola", comenta Carolina.
"Para deixar bem claro, Atendimento Educacional Especializado (AEE) refere-se a um conjunto de atividades, metodologias e práticas pedagógicas com o objetivo de complementar a formação do aluno, fortalecendo a participação e aprendizagem dos estudantes com deficiência, transtornos de aprendizagem (como o TEA - Transtorno do Espectro Autista) e altas habilidades / superdotação no ensino regular. Um dos pontos críticos do projeto de lei está justamente na definição do profissional que acompanhará uma pessoa com deficiência dentro do ambiente letivo. O documento informa que a instituição de ensino deverá permitir a entrada do 'Acompanhante Terapêutico do aluno', enquanto se fizer necessário", afirma.
"Não fica especificado, portanto, se esse profissional reúne as competências de um profissional de Atendimento Educacional Especializado, possibilitando a interpretação que melhor lhe convier. Esse fator poderia levar a uma série de retrocessos, como a segregação desses alunos e até mesmo a retirada dos mesmos do currículo regular. Outro ponto crítico do projeto de lei é o fato de não constar de quem é a responsabilidade de oferecer profissionais especializados em metodologia inclusiva. A lei em vigência destaca que é dever da instituição de ensino contar com profissional especializado na metodologia inclusiva para cada estudante que necessite do mesmo. Da forma como o PL foi formulado, a instituição pode direcionar para os pais essa responsabilidade de arcar com o profissional sem os conhecimentos necessários para garantir a plena participação e desenvolvimento pedagógico do aluno", completa Carolina Videira.
O pesquisador do autismo, Lucelmo Lacerda, que lançou recentemente o livro 'Crítica à pseudociência em educação especial', diz que muitos municípios estão negando a presença de profissionais necessários para acompanhar crianças que precisam de suporte.
"Isso obriga as famílias, que já enfrentam diversas dificuldades e problemas, a buscar auxílio por meios judiciais. Essas necessidades individuais de apoio não estão vinculadas a abordagens ou visões específicas, mas muitas vezes derivam de intervenções fundamentadas em análises comportamentais aplicadas. A contradição observada nas escolas resulta do fato de que elas frequentemente não adotam práticas baseadas em evidências para apoiar esses indivíduos, criando assim uma demanda externa por profissionais. A solução para esse problema está, principalmente, na incorporação dessas práticas pela própria escola, integrando-as a um plano de intervenção interno. A negação desse processo educacional tem gerado tensões. O projeto de lei enfrenta a dificuldade de não ter passado por um amplo processo de discussão pública, apesar de estar alinhado, em essência, com importantes práticas contemporâneas internacionais", ressalta Lacerda.
Mariana Rosa, cofundadora do Instituto Caue e representante dessa entidade na comissão do Ministério da Educação (MEC) sobre inclusão escolar, também critica a ausência de debates e as muitas versões do PL.
Rodrigo Hübner Mendes, fundador e e superintendente do Instituto Rodrigo Mendes (IRM) e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), relembra que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) revogou o Decreto nº 10.502/2020, de Jair Bolsonaro, que instituia a 'Política Nacional de Educação Especial' considerada segregadora e que já havia sido suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
"Passados oito meses, temos um projeto de lei carregado de equívocos técnicos que conflitam com o atual conhecimento e geram ruídos. Está em dessintonia com o modelo atual e preconiza um processo antigo. Mais uma vez, temos um grupo de parlamentares que não ouviu a sociedade e não promoveu um debate sobre a educação inclusiva", observa Rodrigo Mendes, que também faz parte da comissão do MEC.