Brasil tem ‘bala’ de R$ 2 trilhões para enfrentar especulação indevida, diz pai da LRF


Economista José Roberto Afonso, que esteve em almoço com Lula em Lisboa, na semana passada critica ‘amnésia temporária’ de presidente do Banco Central em recados para o mercado

Por Adriana Fernandes
Atualização:

Considerado um dos maiores especialistas em contas públicas do País, o economista José Roberto Afonso foi um dos convidados do almoço que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), teve em Lisboa, durante estadia em Portugal, na semana passada, após participação na COP-27, no Egito. No restaurante Cícero Bistrot, localizado no bairro de Campo de Ourique, também estava o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, cotado para o Ministério da Fazenda.

O encontro era reservado, mas o local vazou, levando apoiadores de Lula a se concentrar na frente do restaurante para esperar pelo futuro presidente do Brasil. Afonso, que mora na capital portuguesa, diz que o almoço foi informal e relata apenas que Lula foi direto do aeroporto para o local.

José Roberto Afonso diz que Lula não precisa da PEC da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
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Em entrevista que concedeu ao Estadão, na última quarta-feira, 23, ele, que é um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), diz que Lula não precisa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro.

O economista, que hoje é professor do IDP e da Universidade de Lisboa, diz que há uma tensão exagerada do mercado em relação às questões fiscais e avisa: o governo que entra tem “bala” de R$ 2 trilhões para enfrentar a “especulação indevida de curtíssimo prazo” em torno do risco fiscal.

Para ele, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, tem que alertar o mercado que o governo está entrando com um caixa de 17% do PIB. “Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC.”

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Leia os principais trechos da entrevista:

Como avalia as negociações em torno da PEC da Transição?

O Brasil está vivendo não uma fase de transição, mas de travessia. Transição é quando só mudam as pessoas e o Brasil vai mudar de ares. Tem a travessia política, que é muito importante. Chamo de travessia porque não é um governo que saiu majoritário em tudo, nos governos estaduais, no Congresso. Esse tempo é o de fazer as concertações políticas. O pessoal da economia está muito nervoso, ansioso, e não compreendendo esses tempos.

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Mas foi o governo eleito que decidiu apresentar uma PEC da Transição.

Vamos ser francos, o menos relevante é a parte fiscal. O que está sendo decidido com a PEC, antes de tudo, é a sucessão das duas Casas. É muito mais o Congresso se oferecendo e pedindo para mandar uma PEC, do que o novo governo em si necessitando de uma PEC.

O governo eleito caiu, então, numa armadilha?

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Não. O que está comandando as decisões não é a questão fiscal. Não é ainda governo. Se o mercado está nervoso, se isso vai afetar a gestão da dívida, quem tem que resolver é o Ministério da Economia e o Banco Central. Se há alguma tensão além do normal, cabe ao BC gerir o câmbio e cabe à mesa da dívida do Tesouro administrar.

Está sendo gestada uma crise econômica?

Não vejo chance de ter uma crise quando o País conta com o volume de reservas cambiais que tem. E quero alertar: o caixa do Tesouro em reais é igual ao volume de reservas. O Tesouro tem um caixa de 17% do PIB. Não consigo entender como um governo que tem um caixa desse tamanho possa ter crise. Temos que fazer uma correlação entre política fiscal e política monetária, entre o BC e o Tesouro. O BC tem autoridade técnica e moral para conduzir essas políticas, mirar a inflação e acionar os instrumentos.

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De que forma?

Tem que ter uma harmonização. Tem que tomar cuidado. Nós estamos vivendo um momento de vácuo de poder e gerenciamento fiscal. Felizmente, não tem isso na área monetária. O BC está com autonomia resguardada e funcionando. É hora de o BC ajudar, sim, o fiscal. Não financiando, mas é bom o BC lembrar ao mercado do caixa do Tesouro. Se o Tesouro vai renovar os papéis e a taxa de juros está muito alta, não precisa renovar. Saca o caixa e resgata o papel. A curva de juros abriu muito no longo prazo, o Tesouro pode ir ao mercado e recomprar o papel longo.

O Tesouro, então, está tímido?

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Talvez, neste momento, o Tesouro esteja precisando de um pouco da ajuda do BC na gestão da dívida.

Como o BC poderia ajudar mais o Tesouro?

O Tesouro é o maior player. O BC ajuda alertando ao mercado. Se o BC agir como o mercado financeiro, olhando só o curto prazo e não o médio e o longo prazos, vai ter prejuízos. Eu acho que está esperando definições. Cabe ao BC, sim, alertar ao mercado.

Mas o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem apontado ao mercado os riscos fiscais e mostrado preocupação com as negociações da PEC.

Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC. Eu confio que ele vá atuar como presidente do BC, inclusive porque é renomado e premiado internacionalmente. Era bom alertar que, nessa transição, vai ter um governo que está entrando com caixa de 17% do PIB. A dívida pública é alta, mas o caixa é muito alto. Só o caixa direto do Tesouro está em R$ 1,5 trilhão. Ainda tem os recursos de fundos e programas, do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). O governo tem bala de algo de R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação indevida de curtíssimo prazo em torno do risco fiscal.

Em Portugal, você almoçou com o presidente eleito. O que conversaram?

O encontro foi informal. Ele estava chegando da COP e chegou ao restaurante direto do aeroporto. Foi uma conversa social.

Como avalia o andamento da transição?

Essa não é uma transição normal. O País está fraturado. Imagina na área econômica o que é isso. Tem que conhecer dados. Acho que o governo tem instrumentos para enfrentar a emergência social sem precisar de PEC. Se não aprovar a PEC, insisto, tem como o governo usar instrumentos legais e constitucionais. O teto já tem uma exceção para usar crédito extraordinário.

Qual o argumento legal para uso do crédito extraordinário?

Muito simples. O que motiva o crédito extraordinário: guerra, calamidade pública e comoção interna. Essa fome é comoção interna. Eu prefiro muito mais o crédito extraordinário do que a PEC porque é para resolver aquilo ali e é temporário. Emergência e imprevisibilidade estão postas. Não só eu penso assim.

E se o Congresso não aprovar o Orçamento de 2023 até o final do ano?

Dá para se contar nos dedos os anos em que o Orçamento foi aprovado no ano anterior. E tem regras previstas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) para funcionamento do governo. Estão dadas as condições para o governo enfrentar a calamidade pública que é a fome.

Essa etapa de escolha do crédito em vez da PEC já não foi vencida?

Eles optaram pela PEC, mas se ela não for aprovada, tem esse instrumento à mão. É o que importa. Não é um instrumento novo. Resolve sem PEC. Vai precisar de PEC? Vai, mas tem que fazer com calma.

Qual a leitura da fala de Lula em Portugal de que não há razão para o nervosismo do mercado com a política fiscal?

Que precisa conciliar as políticas econômicas e sociais. O que ele tinha comentado é que precisa diferenciar gastos públicos. Isso é algo muito importante e espero que ele venha colocar. Não se pode tratar o investimento em estrada igual comprar uma caneta BIC, de custeio. O gasto de custeio não acrescenta capital e não gera retorno no futuro.

Essa separação é fundamental?

Não precisa nem o Lula dizer. Seja no investimento, seja no gasto social, o Estado e os municípios são cruciais. O Fernando Rezende (economista da FGV) disse num debate recente do Comsefaz que o País tem que voltar a funcionar com uma federação. O Lula tem a percepção bem clara de que precisa fazer um pacto com governadores, independente de partido e região. Como ele tem que fazer um pacto com as prefeituras.

Por que isso é tão importante?

As políticas, as ações que permitem superar a miséria e crescer dependem disso. Vai ter os maiores Estados comandados por aliados do Bolsonaro. Eu não acredito que eles vão brigar com Brasília, com Lula. Todos eles já colocaram que o que está em jogo é a governabilidade. A pactuação é de interesse de todo mundo.

A pactuação vem na frente?

Não tem que inverter a mão. Não pode colocar a economia acima da política nesse momento. Eu vejo, quem está de fora, uma tensão exagerada nas questões fiscais. Temos problemas no campo fiscal, precisamos fazer uma concertação para reconstruir a casa fiscal. Quando a casa cai, o teto vira piso. Não tem teto. A casa caiu! Vamos precisar fazer as reformas agora.

A desconstitucionalização das regras fiscais será necessária?

Nem um País aprova tanta emenda constitucional como no Brasil e judicializou toda a matéria que ela trata. O que aconteceu com o fiscal e nas finanças públicas é o retrato da falência do governo. Um governo que não governa e um Congresso que passou a governar por emenda constitucional para tratar das grandes questões quando lhe interessa ou não e por emenda parlamentar secreta. É o único País do mundo que tem orçamento público com dotação secreta. Isso é retrato da falência do Executivo. Não pode continuar isso.

Como um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ela funcionou mais do que o teto?

Não tenho dúvida nenhuma. Quem fala que a LRF morreu é que nunca foi governador e prefeito. O governo federal é quem nunca teve um teto de dívida (o governo federal nunca regulamentou o seu teto de dívida previsto na LRF). Criação de gasto, renúncia fiscal tem que compensar e está contemplado na LRF. Têm duas leis. A lei que é só lembrada quando a União quer cobrar os outros governos, dependendo do rigor de quem está no plantão. E a lei para o governo federal em que hora vale e hora não vale a compensação. Virou a lei vagalume: “acendo e apago”.

Por que não há cobrança e punição ao não cumprimento?

A lei está em vigor. Aí, a qualquer momento o Ministério Público Federal e o TCU podem exigir, e espero que venha o que está previsto. E que os mesmos rigores que aos Estados e municípios sejam aplicados retroativos e futuramente à União. A União não tem moral para cobrar que Estados e municípios tenham trajetória de dívida decrescente, que está correto, se ela não se submete à regra. Os rigores têm que ser iguais. É preciso igualdade Federativa.

Por que não acontece?

Muitas das lacunas que temos hoje na área fiscal têm menos a ver com a LRF e mais com ausência de uma lei geral de contas pública, de Orçamento, contabilidade pública. É um absurdo. A nossa lei é de 1964 e ninguém se interessa em consertá-la. É engraçado que o mercado financeiro se preocupa com âncora fiscal e não briga para ter uma lei desta. Boa parte das coisas que estamos discutindo hoje já está contemplada na LRF. Mal leem. Vejo o pessoal fazendo propostas dizendo que é preciso adotar, só que já existem. Ou o governo não cumpre e não foi cobrado ou não foi regulamentado como é o caso do limite da dívida e do Conselho de Gestão Fiscal.

Como avalia as propostas fiscais de meta para a dívida?

Há uma enorme confusão entre limite e meta. O limite é até onde o governo pode ir, que cabe ao Senado por iniciativa do presidente da República. A proposta que foi apresentada pelo governo Fernando Henrique foi arquivada e eu espero que o presidente Lula mande uma proposta ao Congresso. O que ele não fez nos dois mandatos dele, pode fazer agora. O Senado fixa o limite e todo o ano, quando mandar a LDO, cabe ao governo dizer se está bom ou se precisa subir o limite. É assim que se faz política anticíclica. Acima de tudo tem que justificar. A meta é que tem que estar na LDO.

Há uma inflação de proposta de arcabouço fiscal?

O que é mais importante é especialistas estarem se reunindo para fazer o diagnóstico e buscarem a solução. Política fiscal é igual a futebol e todo mundo se mete a dar palpite. É igual a Copa do Mundo. Todo mundo virou técnico de futebol e faz escalação. Precisamos encontrar novos caminhos. Como está não dá para ficar. É natural que existam divergências, mas de preferência quem tenha formação e experiência profissional nesse campo.

Considerado um dos maiores especialistas em contas públicas do País, o economista José Roberto Afonso foi um dos convidados do almoço que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), teve em Lisboa, durante estadia em Portugal, na semana passada, após participação na COP-27, no Egito. No restaurante Cícero Bistrot, localizado no bairro de Campo de Ourique, também estava o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, cotado para o Ministério da Fazenda.

O encontro era reservado, mas o local vazou, levando apoiadores de Lula a se concentrar na frente do restaurante para esperar pelo futuro presidente do Brasil. Afonso, que mora na capital portuguesa, diz que o almoço foi informal e relata apenas que Lula foi direto do aeroporto para o local.

José Roberto Afonso diz que Lula não precisa da PEC da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em entrevista que concedeu ao Estadão, na última quarta-feira, 23, ele, que é um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), diz que Lula não precisa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro.

O economista, que hoje é professor do IDP e da Universidade de Lisboa, diz que há uma tensão exagerada do mercado em relação às questões fiscais e avisa: o governo que entra tem “bala” de R$ 2 trilhões para enfrentar a “especulação indevida de curtíssimo prazo” em torno do risco fiscal.

Para ele, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, tem que alertar o mercado que o governo está entrando com um caixa de 17% do PIB. “Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC.”

Leia os principais trechos da entrevista:

Como avalia as negociações em torno da PEC da Transição?

O Brasil está vivendo não uma fase de transição, mas de travessia. Transição é quando só mudam as pessoas e o Brasil vai mudar de ares. Tem a travessia política, que é muito importante. Chamo de travessia porque não é um governo que saiu majoritário em tudo, nos governos estaduais, no Congresso. Esse tempo é o de fazer as concertações políticas. O pessoal da economia está muito nervoso, ansioso, e não compreendendo esses tempos.

Mas foi o governo eleito que decidiu apresentar uma PEC da Transição.

Vamos ser francos, o menos relevante é a parte fiscal. O que está sendo decidido com a PEC, antes de tudo, é a sucessão das duas Casas. É muito mais o Congresso se oferecendo e pedindo para mandar uma PEC, do que o novo governo em si necessitando de uma PEC.

O governo eleito caiu, então, numa armadilha?

Não. O que está comandando as decisões não é a questão fiscal. Não é ainda governo. Se o mercado está nervoso, se isso vai afetar a gestão da dívida, quem tem que resolver é o Ministério da Economia e o Banco Central. Se há alguma tensão além do normal, cabe ao BC gerir o câmbio e cabe à mesa da dívida do Tesouro administrar.

Está sendo gestada uma crise econômica?

Não vejo chance de ter uma crise quando o País conta com o volume de reservas cambiais que tem. E quero alertar: o caixa do Tesouro em reais é igual ao volume de reservas. O Tesouro tem um caixa de 17% do PIB. Não consigo entender como um governo que tem um caixa desse tamanho possa ter crise. Temos que fazer uma correlação entre política fiscal e política monetária, entre o BC e o Tesouro. O BC tem autoridade técnica e moral para conduzir essas políticas, mirar a inflação e acionar os instrumentos.

De que forma?

Tem que ter uma harmonização. Tem que tomar cuidado. Nós estamos vivendo um momento de vácuo de poder e gerenciamento fiscal. Felizmente, não tem isso na área monetária. O BC está com autonomia resguardada e funcionando. É hora de o BC ajudar, sim, o fiscal. Não financiando, mas é bom o BC lembrar ao mercado do caixa do Tesouro. Se o Tesouro vai renovar os papéis e a taxa de juros está muito alta, não precisa renovar. Saca o caixa e resgata o papel. A curva de juros abriu muito no longo prazo, o Tesouro pode ir ao mercado e recomprar o papel longo.

O Tesouro, então, está tímido?

Talvez, neste momento, o Tesouro esteja precisando de um pouco da ajuda do BC na gestão da dívida.

Como o BC poderia ajudar mais o Tesouro?

O Tesouro é o maior player. O BC ajuda alertando ao mercado. Se o BC agir como o mercado financeiro, olhando só o curto prazo e não o médio e o longo prazos, vai ter prejuízos. Eu acho que está esperando definições. Cabe ao BC, sim, alertar ao mercado.

Mas o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem apontado ao mercado os riscos fiscais e mostrado preocupação com as negociações da PEC.

Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC. Eu confio que ele vá atuar como presidente do BC, inclusive porque é renomado e premiado internacionalmente. Era bom alertar que, nessa transição, vai ter um governo que está entrando com caixa de 17% do PIB. A dívida pública é alta, mas o caixa é muito alto. Só o caixa direto do Tesouro está em R$ 1,5 trilhão. Ainda tem os recursos de fundos e programas, do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). O governo tem bala de algo de R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação indevida de curtíssimo prazo em torno do risco fiscal.

Em Portugal, você almoçou com o presidente eleito. O que conversaram?

O encontro foi informal. Ele estava chegando da COP e chegou ao restaurante direto do aeroporto. Foi uma conversa social.

Como avalia o andamento da transição?

Essa não é uma transição normal. O País está fraturado. Imagina na área econômica o que é isso. Tem que conhecer dados. Acho que o governo tem instrumentos para enfrentar a emergência social sem precisar de PEC. Se não aprovar a PEC, insisto, tem como o governo usar instrumentos legais e constitucionais. O teto já tem uma exceção para usar crédito extraordinário.

Qual o argumento legal para uso do crédito extraordinário?

Muito simples. O que motiva o crédito extraordinário: guerra, calamidade pública e comoção interna. Essa fome é comoção interna. Eu prefiro muito mais o crédito extraordinário do que a PEC porque é para resolver aquilo ali e é temporário. Emergência e imprevisibilidade estão postas. Não só eu penso assim.

E se o Congresso não aprovar o Orçamento de 2023 até o final do ano?

Dá para se contar nos dedos os anos em que o Orçamento foi aprovado no ano anterior. E tem regras previstas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) para funcionamento do governo. Estão dadas as condições para o governo enfrentar a calamidade pública que é a fome.

Essa etapa de escolha do crédito em vez da PEC já não foi vencida?

Eles optaram pela PEC, mas se ela não for aprovada, tem esse instrumento à mão. É o que importa. Não é um instrumento novo. Resolve sem PEC. Vai precisar de PEC? Vai, mas tem que fazer com calma.

Qual a leitura da fala de Lula em Portugal de que não há razão para o nervosismo do mercado com a política fiscal?

Que precisa conciliar as políticas econômicas e sociais. O que ele tinha comentado é que precisa diferenciar gastos públicos. Isso é algo muito importante e espero que ele venha colocar. Não se pode tratar o investimento em estrada igual comprar uma caneta BIC, de custeio. O gasto de custeio não acrescenta capital e não gera retorno no futuro.

Essa separação é fundamental?

Não precisa nem o Lula dizer. Seja no investimento, seja no gasto social, o Estado e os municípios são cruciais. O Fernando Rezende (economista da FGV) disse num debate recente do Comsefaz que o País tem que voltar a funcionar com uma federação. O Lula tem a percepção bem clara de que precisa fazer um pacto com governadores, independente de partido e região. Como ele tem que fazer um pacto com as prefeituras.

Por que isso é tão importante?

As políticas, as ações que permitem superar a miséria e crescer dependem disso. Vai ter os maiores Estados comandados por aliados do Bolsonaro. Eu não acredito que eles vão brigar com Brasília, com Lula. Todos eles já colocaram que o que está em jogo é a governabilidade. A pactuação é de interesse de todo mundo.

A pactuação vem na frente?

Não tem que inverter a mão. Não pode colocar a economia acima da política nesse momento. Eu vejo, quem está de fora, uma tensão exagerada nas questões fiscais. Temos problemas no campo fiscal, precisamos fazer uma concertação para reconstruir a casa fiscal. Quando a casa cai, o teto vira piso. Não tem teto. A casa caiu! Vamos precisar fazer as reformas agora.

A desconstitucionalização das regras fiscais será necessária?

Nem um País aprova tanta emenda constitucional como no Brasil e judicializou toda a matéria que ela trata. O que aconteceu com o fiscal e nas finanças públicas é o retrato da falência do governo. Um governo que não governa e um Congresso que passou a governar por emenda constitucional para tratar das grandes questões quando lhe interessa ou não e por emenda parlamentar secreta. É o único País do mundo que tem orçamento público com dotação secreta. Isso é retrato da falência do Executivo. Não pode continuar isso.

Como um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ela funcionou mais do que o teto?

Não tenho dúvida nenhuma. Quem fala que a LRF morreu é que nunca foi governador e prefeito. O governo federal é quem nunca teve um teto de dívida (o governo federal nunca regulamentou o seu teto de dívida previsto na LRF). Criação de gasto, renúncia fiscal tem que compensar e está contemplado na LRF. Têm duas leis. A lei que é só lembrada quando a União quer cobrar os outros governos, dependendo do rigor de quem está no plantão. E a lei para o governo federal em que hora vale e hora não vale a compensação. Virou a lei vagalume: “acendo e apago”.

Por que não há cobrança e punição ao não cumprimento?

A lei está em vigor. Aí, a qualquer momento o Ministério Público Federal e o TCU podem exigir, e espero que venha o que está previsto. E que os mesmos rigores que aos Estados e municípios sejam aplicados retroativos e futuramente à União. A União não tem moral para cobrar que Estados e municípios tenham trajetória de dívida decrescente, que está correto, se ela não se submete à regra. Os rigores têm que ser iguais. É preciso igualdade Federativa.

Por que não acontece?

Muitas das lacunas que temos hoje na área fiscal têm menos a ver com a LRF e mais com ausência de uma lei geral de contas pública, de Orçamento, contabilidade pública. É um absurdo. A nossa lei é de 1964 e ninguém se interessa em consertá-la. É engraçado que o mercado financeiro se preocupa com âncora fiscal e não briga para ter uma lei desta. Boa parte das coisas que estamos discutindo hoje já está contemplada na LRF. Mal leem. Vejo o pessoal fazendo propostas dizendo que é preciso adotar, só que já existem. Ou o governo não cumpre e não foi cobrado ou não foi regulamentado como é o caso do limite da dívida e do Conselho de Gestão Fiscal.

Como avalia as propostas fiscais de meta para a dívida?

Há uma enorme confusão entre limite e meta. O limite é até onde o governo pode ir, que cabe ao Senado por iniciativa do presidente da República. A proposta que foi apresentada pelo governo Fernando Henrique foi arquivada e eu espero que o presidente Lula mande uma proposta ao Congresso. O que ele não fez nos dois mandatos dele, pode fazer agora. O Senado fixa o limite e todo o ano, quando mandar a LDO, cabe ao governo dizer se está bom ou se precisa subir o limite. É assim que se faz política anticíclica. Acima de tudo tem que justificar. A meta é que tem que estar na LDO.

Há uma inflação de proposta de arcabouço fiscal?

O que é mais importante é especialistas estarem se reunindo para fazer o diagnóstico e buscarem a solução. Política fiscal é igual a futebol e todo mundo se mete a dar palpite. É igual a Copa do Mundo. Todo mundo virou técnico de futebol e faz escalação. Precisamos encontrar novos caminhos. Como está não dá para ficar. É natural que existam divergências, mas de preferência quem tenha formação e experiência profissional nesse campo.

Considerado um dos maiores especialistas em contas públicas do País, o economista José Roberto Afonso foi um dos convidados do almoço que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), teve em Lisboa, durante estadia em Portugal, na semana passada, após participação na COP-27, no Egito. No restaurante Cícero Bistrot, localizado no bairro de Campo de Ourique, também estava o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, cotado para o Ministério da Fazenda.

O encontro era reservado, mas o local vazou, levando apoiadores de Lula a se concentrar na frente do restaurante para esperar pelo futuro presidente do Brasil. Afonso, que mora na capital portuguesa, diz que o almoço foi informal e relata apenas que Lula foi direto do aeroporto para o local.

José Roberto Afonso diz que Lula não precisa da PEC da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em entrevista que concedeu ao Estadão, na última quarta-feira, 23, ele, que é um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), diz que Lula não precisa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro.

O economista, que hoje é professor do IDP e da Universidade de Lisboa, diz que há uma tensão exagerada do mercado em relação às questões fiscais e avisa: o governo que entra tem “bala” de R$ 2 trilhões para enfrentar a “especulação indevida de curtíssimo prazo” em torno do risco fiscal.

Para ele, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, tem que alertar o mercado que o governo está entrando com um caixa de 17% do PIB. “Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC.”

Leia os principais trechos da entrevista:

Como avalia as negociações em torno da PEC da Transição?

O Brasil está vivendo não uma fase de transição, mas de travessia. Transição é quando só mudam as pessoas e o Brasil vai mudar de ares. Tem a travessia política, que é muito importante. Chamo de travessia porque não é um governo que saiu majoritário em tudo, nos governos estaduais, no Congresso. Esse tempo é o de fazer as concertações políticas. O pessoal da economia está muito nervoso, ansioso, e não compreendendo esses tempos.

Mas foi o governo eleito que decidiu apresentar uma PEC da Transição.

Vamos ser francos, o menos relevante é a parte fiscal. O que está sendo decidido com a PEC, antes de tudo, é a sucessão das duas Casas. É muito mais o Congresso se oferecendo e pedindo para mandar uma PEC, do que o novo governo em si necessitando de uma PEC.

O governo eleito caiu, então, numa armadilha?

Não. O que está comandando as decisões não é a questão fiscal. Não é ainda governo. Se o mercado está nervoso, se isso vai afetar a gestão da dívida, quem tem que resolver é o Ministério da Economia e o Banco Central. Se há alguma tensão além do normal, cabe ao BC gerir o câmbio e cabe à mesa da dívida do Tesouro administrar.

Está sendo gestada uma crise econômica?

Não vejo chance de ter uma crise quando o País conta com o volume de reservas cambiais que tem. E quero alertar: o caixa do Tesouro em reais é igual ao volume de reservas. O Tesouro tem um caixa de 17% do PIB. Não consigo entender como um governo que tem um caixa desse tamanho possa ter crise. Temos que fazer uma correlação entre política fiscal e política monetária, entre o BC e o Tesouro. O BC tem autoridade técnica e moral para conduzir essas políticas, mirar a inflação e acionar os instrumentos.

De que forma?

Tem que ter uma harmonização. Tem que tomar cuidado. Nós estamos vivendo um momento de vácuo de poder e gerenciamento fiscal. Felizmente, não tem isso na área monetária. O BC está com autonomia resguardada e funcionando. É hora de o BC ajudar, sim, o fiscal. Não financiando, mas é bom o BC lembrar ao mercado do caixa do Tesouro. Se o Tesouro vai renovar os papéis e a taxa de juros está muito alta, não precisa renovar. Saca o caixa e resgata o papel. A curva de juros abriu muito no longo prazo, o Tesouro pode ir ao mercado e recomprar o papel longo.

O Tesouro, então, está tímido?

Talvez, neste momento, o Tesouro esteja precisando de um pouco da ajuda do BC na gestão da dívida.

Como o BC poderia ajudar mais o Tesouro?

O Tesouro é o maior player. O BC ajuda alertando ao mercado. Se o BC agir como o mercado financeiro, olhando só o curto prazo e não o médio e o longo prazos, vai ter prejuízos. Eu acho que está esperando definições. Cabe ao BC, sim, alertar ao mercado.

Mas o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem apontado ao mercado os riscos fiscais e mostrado preocupação com as negociações da PEC.

Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC. Eu confio que ele vá atuar como presidente do BC, inclusive porque é renomado e premiado internacionalmente. Era bom alertar que, nessa transição, vai ter um governo que está entrando com caixa de 17% do PIB. A dívida pública é alta, mas o caixa é muito alto. Só o caixa direto do Tesouro está em R$ 1,5 trilhão. Ainda tem os recursos de fundos e programas, do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). O governo tem bala de algo de R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação indevida de curtíssimo prazo em torno do risco fiscal.

Em Portugal, você almoçou com o presidente eleito. O que conversaram?

O encontro foi informal. Ele estava chegando da COP e chegou ao restaurante direto do aeroporto. Foi uma conversa social.

Como avalia o andamento da transição?

Essa não é uma transição normal. O País está fraturado. Imagina na área econômica o que é isso. Tem que conhecer dados. Acho que o governo tem instrumentos para enfrentar a emergência social sem precisar de PEC. Se não aprovar a PEC, insisto, tem como o governo usar instrumentos legais e constitucionais. O teto já tem uma exceção para usar crédito extraordinário.

Qual o argumento legal para uso do crédito extraordinário?

Muito simples. O que motiva o crédito extraordinário: guerra, calamidade pública e comoção interna. Essa fome é comoção interna. Eu prefiro muito mais o crédito extraordinário do que a PEC porque é para resolver aquilo ali e é temporário. Emergência e imprevisibilidade estão postas. Não só eu penso assim.

E se o Congresso não aprovar o Orçamento de 2023 até o final do ano?

Dá para se contar nos dedos os anos em que o Orçamento foi aprovado no ano anterior. E tem regras previstas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) para funcionamento do governo. Estão dadas as condições para o governo enfrentar a calamidade pública que é a fome.

Essa etapa de escolha do crédito em vez da PEC já não foi vencida?

Eles optaram pela PEC, mas se ela não for aprovada, tem esse instrumento à mão. É o que importa. Não é um instrumento novo. Resolve sem PEC. Vai precisar de PEC? Vai, mas tem que fazer com calma.

Qual a leitura da fala de Lula em Portugal de que não há razão para o nervosismo do mercado com a política fiscal?

Que precisa conciliar as políticas econômicas e sociais. O que ele tinha comentado é que precisa diferenciar gastos públicos. Isso é algo muito importante e espero que ele venha colocar. Não se pode tratar o investimento em estrada igual comprar uma caneta BIC, de custeio. O gasto de custeio não acrescenta capital e não gera retorno no futuro.

Essa separação é fundamental?

Não precisa nem o Lula dizer. Seja no investimento, seja no gasto social, o Estado e os municípios são cruciais. O Fernando Rezende (economista da FGV) disse num debate recente do Comsefaz que o País tem que voltar a funcionar com uma federação. O Lula tem a percepção bem clara de que precisa fazer um pacto com governadores, independente de partido e região. Como ele tem que fazer um pacto com as prefeituras.

Por que isso é tão importante?

As políticas, as ações que permitem superar a miséria e crescer dependem disso. Vai ter os maiores Estados comandados por aliados do Bolsonaro. Eu não acredito que eles vão brigar com Brasília, com Lula. Todos eles já colocaram que o que está em jogo é a governabilidade. A pactuação é de interesse de todo mundo.

A pactuação vem na frente?

Não tem que inverter a mão. Não pode colocar a economia acima da política nesse momento. Eu vejo, quem está de fora, uma tensão exagerada nas questões fiscais. Temos problemas no campo fiscal, precisamos fazer uma concertação para reconstruir a casa fiscal. Quando a casa cai, o teto vira piso. Não tem teto. A casa caiu! Vamos precisar fazer as reformas agora.

A desconstitucionalização das regras fiscais será necessária?

Nem um País aprova tanta emenda constitucional como no Brasil e judicializou toda a matéria que ela trata. O que aconteceu com o fiscal e nas finanças públicas é o retrato da falência do governo. Um governo que não governa e um Congresso que passou a governar por emenda constitucional para tratar das grandes questões quando lhe interessa ou não e por emenda parlamentar secreta. É o único País do mundo que tem orçamento público com dotação secreta. Isso é retrato da falência do Executivo. Não pode continuar isso.

Como um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ela funcionou mais do que o teto?

Não tenho dúvida nenhuma. Quem fala que a LRF morreu é que nunca foi governador e prefeito. O governo federal é quem nunca teve um teto de dívida (o governo federal nunca regulamentou o seu teto de dívida previsto na LRF). Criação de gasto, renúncia fiscal tem que compensar e está contemplado na LRF. Têm duas leis. A lei que é só lembrada quando a União quer cobrar os outros governos, dependendo do rigor de quem está no plantão. E a lei para o governo federal em que hora vale e hora não vale a compensação. Virou a lei vagalume: “acendo e apago”.

Por que não há cobrança e punição ao não cumprimento?

A lei está em vigor. Aí, a qualquer momento o Ministério Público Federal e o TCU podem exigir, e espero que venha o que está previsto. E que os mesmos rigores que aos Estados e municípios sejam aplicados retroativos e futuramente à União. A União não tem moral para cobrar que Estados e municípios tenham trajetória de dívida decrescente, que está correto, se ela não se submete à regra. Os rigores têm que ser iguais. É preciso igualdade Federativa.

Por que não acontece?

Muitas das lacunas que temos hoje na área fiscal têm menos a ver com a LRF e mais com ausência de uma lei geral de contas pública, de Orçamento, contabilidade pública. É um absurdo. A nossa lei é de 1964 e ninguém se interessa em consertá-la. É engraçado que o mercado financeiro se preocupa com âncora fiscal e não briga para ter uma lei desta. Boa parte das coisas que estamos discutindo hoje já está contemplada na LRF. Mal leem. Vejo o pessoal fazendo propostas dizendo que é preciso adotar, só que já existem. Ou o governo não cumpre e não foi cobrado ou não foi regulamentado como é o caso do limite da dívida e do Conselho de Gestão Fiscal.

Como avalia as propostas fiscais de meta para a dívida?

Há uma enorme confusão entre limite e meta. O limite é até onde o governo pode ir, que cabe ao Senado por iniciativa do presidente da República. A proposta que foi apresentada pelo governo Fernando Henrique foi arquivada e eu espero que o presidente Lula mande uma proposta ao Congresso. O que ele não fez nos dois mandatos dele, pode fazer agora. O Senado fixa o limite e todo o ano, quando mandar a LDO, cabe ao governo dizer se está bom ou se precisa subir o limite. É assim que se faz política anticíclica. Acima de tudo tem que justificar. A meta é que tem que estar na LDO.

Há uma inflação de proposta de arcabouço fiscal?

O que é mais importante é especialistas estarem se reunindo para fazer o diagnóstico e buscarem a solução. Política fiscal é igual a futebol e todo mundo se mete a dar palpite. É igual a Copa do Mundo. Todo mundo virou técnico de futebol e faz escalação. Precisamos encontrar novos caminhos. Como está não dá para ficar. É natural que existam divergências, mas de preferência quem tenha formação e experiência profissional nesse campo.

Considerado um dos maiores especialistas em contas públicas do País, o economista José Roberto Afonso foi um dos convidados do almoço que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), teve em Lisboa, durante estadia em Portugal, na semana passada, após participação na COP-27, no Egito. No restaurante Cícero Bistrot, localizado no bairro de Campo de Ourique, também estava o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, cotado para o Ministério da Fazenda.

O encontro era reservado, mas o local vazou, levando apoiadores de Lula a se concentrar na frente do restaurante para esperar pelo futuro presidente do Brasil. Afonso, que mora na capital portuguesa, diz que o almoço foi informal e relata apenas que Lula foi direto do aeroporto para o local.

José Roberto Afonso diz que Lula não precisa da PEC da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Em entrevista que concedeu ao Estadão, na última quarta-feira, 23, ele, que é um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), diz que Lula não precisa da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição para pagar o Bolsa Família de R$ 600 a partir de janeiro.

O economista, que hoje é professor do IDP e da Universidade de Lisboa, diz que há uma tensão exagerada do mercado em relação às questões fiscais e avisa: o governo que entra tem “bala” de R$ 2 trilhões para enfrentar a “especulação indevida de curtíssimo prazo” em torno do risco fiscal.

Para ele, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, tem que alertar o mercado que o governo está entrando com um caixa de 17% do PIB. “Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC.”

Leia os principais trechos da entrevista:

Como avalia as negociações em torno da PEC da Transição?

O Brasil está vivendo não uma fase de transição, mas de travessia. Transição é quando só mudam as pessoas e o Brasil vai mudar de ares. Tem a travessia política, que é muito importante. Chamo de travessia porque não é um governo que saiu majoritário em tudo, nos governos estaduais, no Congresso. Esse tempo é o de fazer as concertações políticas. O pessoal da economia está muito nervoso, ansioso, e não compreendendo esses tempos.

Mas foi o governo eleito que decidiu apresentar uma PEC da Transição.

Vamos ser francos, o menos relevante é a parte fiscal. O que está sendo decidido com a PEC, antes de tudo, é a sucessão das duas Casas. É muito mais o Congresso se oferecendo e pedindo para mandar uma PEC, do que o novo governo em si necessitando de uma PEC.

O governo eleito caiu, então, numa armadilha?

Não. O que está comandando as decisões não é a questão fiscal. Não é ainda governo. Se o mercado está nervoso, se isso vai afetar a gestão da dívida, quem tem que resolver é o Ministério da Economia e o Banco Central. Se há alguma tensão além do normal, cabe ao BC gerir o câmbio e cabe à mesa da dívida do Tesouro administrar.

Está sendo gestada uma crise econômica?

Não vejo chance de ter uma crise quando o País conta com o volume de reservas cambiais que tem. E quero alertar: o caixa do Tesouro em reais é igual ao volume de reservas. O Tesouro tem um caixa de 17% do PIB. Não consigo entender como um governo que tem um caixa desse tamanho possa ter crise. Temos que fazer uma correlação entre política fiscal e política monetária, entre o BC e o Tesouro. O BC tem autoridade técnica e moral para conduzir essas políticas, mirar a inflação e acionar os instrumentos.

De que forma?

Tem que ter uma harmonização. Tem que tomar cuidado. Nós estamos vivendo um momento de vácuo de poder e gerenciamento fiscal. Felizmente, não tem isso na área monetária. O BC está com autonomia resguardada e funcionando. É hora de o BC ajudar, sim, o fiscal. Não financiando, mas é bom o BC lembrar ao mercado do caixa do Tesouro. Se o Tesouro vai renovar os papéis e a taxa de juros está muito alta, não precisa renovar. Saca o caixa e resgata o papel. A curva de juros abriu muito no longo prazo, o Tesouro pode ir ao mercado e recomprar o papel longo.

O Tesouro, então, está tímido?

Talvez, neste momento, o Tesouro esteja precisando de um pouco da ajuda do BC na gestão da dívida.

Como o BC poderia ajudar mais o Tesouro?

O Tesouro é o maior player. O BC ajuda alertando ao mercado. Se o BC agir como o mercado financeiro, olhando só o curto prazo e não o médio e o longo prazos, vai ter prejuízos. Eu acho que está esperando definições. Cabe ao BC, sim, alertar ao mercado.

Mas o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem apontado ao mercado os riscos fiscais e mostrado preocupação com as negociações da PEC.

Espero que tenha sido um momento de amnésia temporária. Já que não tem ministro da Fazenda, [espero que] ele tenha se confundido e esquecido que é presidente do BC. Eu confio que ele vá atuar como presidente do BC, inclusive porque é renomado e premiado internacionalmente. Era bom alertar que, nessa transição, vai ter um governo que está entrando com caixa de 17% do PIB. A dívida pública é alta, mas o caixa é muito alto. Só o caixa direto do Tesouro está em R$ 1,5 trilhão. Ainda tem os recursos de fundos e programas, do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). O governo tem bala de algo de R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação indevida de curtíssimo prazo em torno do risco fiscal.

Em Portugal, você almoçou com o presidente eleito. O que conversaram?

O encontro foi informal. Ele estava chegando da COP e chegou ao restaurante direto do aeroporto. Foi uma conversa social.

Como avalia o andamento da transição?

Essa não é uma transição normal. O País está fraturado. Imagina na área econômica o que é isso. Tem que conhecer dados. Acho que o governo tem instrumentos para enfrentar a emergência social sem precisar de PEC. Se não aprovar a PEC, insisto, tem como o governo usar instrumentos legais e constitucionais. O teto já tem uma exceção para usar crédito extraordinário.

Qual o argumento legal para uso do crédito extraordinário?

Muito simples. O que motiva o crédito extraordinário: guerra, calamidade pública e comoção interna. Essa fome é comoção interna. Eu prefiro muito mais o crédito extraordinário do que a PEC porque é para resolver aquilo ali e é temporário. Emergência e imprevisibilidade estão postas. Não só eu penso assim.

E se o Congresso não aprovar o Orçamento de 2023 até o final do ano?

Dá para se contar nos dedos os anos em que o Orçamento foi aprovado no ano anterior. E tem regras previstas na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) para funcionamento do governo. Estão dadas as condições para o governo enfrentar a calamidade pública que é a fome.

Essa etapa de escolha do crédito em vez da PEC já não foi vencida?

Eles optaram pela PEC, mas se ela não for aprovada, tem esse instrumento à mão. É o que importa. Não é um instrumento novo. Resolve sem PEC. Vai precisar de PEC? Vai, mas tem que fazer com calma.

Qual a leitura da fala de Lula em Portugal de que não há razão para o nervosismo do mercado com a política fiscal?

Que precisa conciliar as políticas econômicas e sociais. O que ele tinha comentado é que precisa diferenciar gastos públicos. Isso é algo muito importante e espero que ele venha colocar. Não se pode tratar o investimento em estrada igual comprar uma caneta BIC, de custeio. O gasto de custeio não acrescenta capital e não gera retorno no futuro.

Essa separação é fundamental?

Não precisa nem o Lula dizer. Seja no investimento, seja no gasto social, o Estado e os municípios são cruciais. O Fernando Rezende (economista da FGV) disse num debate recente do Comsefaz que o País tem que voltar a funcionar com uma federação. O Lula tem a percepção bem clara de que precisa fazer um pacto com governadores, independente de partido e região. Como ele tem que fazer um pacto com as prefeituras.

Por que isso é tão importante?

As políticas, as ações que permitem superar a miséria e crescer dependem disso. Vai ter os maiores Estados comandados por aliados do Bolsonaro. Eu não acredito que eles vão brigar com Brasília, com Lula. Todos eles já colocaram que o que está em jogo é a governabilidade. A pactuação é de interesse de todo mundo.

A pactuação vem na frente?

Não tem que inverter a mão. Não pode colocar a economia acima da política nesse momento. Eu vejo, quem está de fora, uma tensão exagerada nas questões fiscais. Temos problemas no campo fiscal, precisamos fazer uma concertação para reconstruir a casa fiscal. Quando a casa cai, o teto vira piso. Não tem teto. A casa caiu! Vamos precisar fazer as reformas agora.

A desconstitucionalização das regras fiscais será necessária?

Nem um País aprova tanta emenda constitucional como no Brasil e judicializou toda a matéria que ela trata. O que aconteceu com o fiscal e nas finanças públicas é o retrato da falência do governo. Um governo que não governa e um Congresso que passou a governar por emenda constitucional para tratar das grandes questões quando lhe interessa ou não e por emenda parlamentar secreta. É o único País do mundo que tem orçamento público com dotação secreta. Isso é retrato da falência do Executivo. Não pode continuar isso.

Como um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ela funcionou mais do que o teto?

Não tenho dúvida nenhuma. Quem fala que a LRF morreu é que nunca foi governador e prefeito. O governo federal é quem nunca teve um teto de dívida (o governo federal nunca regulamentou o seu teto de dívida previsto na LRF). Criação de gasto, renúncia fiscal tem que compensar e está contemplado na LRF. Têm duas leis. A lei que é só lembrada quando a União quer cobrar os outros governos, dependendo do rigor de quem está no plantão. E a lei para o governo federal em que hora vale e hora não vale a compensação. Virou a lei vagalume: “acendo e apago”.

Por que não há cobrança e punição ao não cumprimento?

A lei está em vigor. Aí, a qualquer momento o Ministério Público Federal e o TCU podem exigir, e espero que venha o que está previsto. E que os mesmos rigores que aos Estados e municípios sejam aplicados retroativos e futuramente à União. A União não tem moral para cobrar que Estados e municípios tenham trajetória de dívida decrescente, que está correto, se ela não se submete à regra. Os rigores têm que ser iguais. É preciso igualdade Federativa.

Por que não acontece?

Muitas das lacunas que temos hoje na área fiscal têm menos a ver com a LRF e mais com ausência de uma lei geral de contas pública, de Orçamento, contabilidade pública. É um absurdo. A nossa lei é de 1964 e ninguém se interessa em consertá-la. É engraçado que o mercado financeiro se preocupa com âncora fiscal e não briga para ter uma lei desta. Boa parte das coisas que estamos discutindo hoje já está contemplada na LRF. Mal leem. Vejo o pessoal fazendo propostas dizendo que é preciso adotar, só que já existem. Ou o governo não cumpre e não foi cobrado ou não foi regulamentado como é o caso do limite da dívida e do Conselho de Gestão Fiscal.

Como avalia as propostas fiscais de meta para a dívida?

Há uma enorme confusão entre limite e meta. O limite é até onde o governo pode ir, que cabe ao Senado por iniciativa do presidente da República. A proposta que foi apresentada pelo governo Fernando Henrique foi arquivada e eu espero que o presidente Lula mande uma proposta ao Congresso. O que ele não fez nos dois mandatos dele, pode fazer agora. O Senado fixa o limite e todo o ano, quando mandar a LDO, cabe ao governo dizer se está bom ou se precisa subir o limite. É assim que se faz política anticíclica. Acima de tudo tem que justificar. A meta é que tem que estar na LDO.

Há uma inflação de proposta de arcabouço fiscal?

O que é mais importante é especialistas estarem se reunindo para fazer o diagnóstico e buscarem a solução. Política fiscal é igual a futebol e todo mundo se mete a dar palpite. É igual a Copa do Mundo. Todo mundo virou técnico de futebol e faz escalação. Precisamos encontrar novos caminhos. Como está não dá para ficar. É natural que existam divergências, mas de preferência quem tenha formação e experiência profissional nesse campo.

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