Mais um aninho e eu estaria completando a metade exata da existência do Serviço Brasileiro da BBC. Trabalhei como funcionário no que, ironicamente, chamávamos, à época, de "escrete canarinho" do que agora é a BBC Brasil. Sim. Já estávamos nos preparando para a disputa da Copa no México. Assim somos, assim éramos. Cheguei aqui em 1968 - um grande ano para se deixar qualquer lugar, não canso de repetir - e trabalhei como funcionário de carteirinha assinada até 1972, quando me baixou um desses santos que, na época, me rondavam, e decidi voltar para o Brasil. Não dá para dizer que arrependido, ou morto de saudades. Talvez a ditadura militar me fizesse falta à enredada constituição psicológica de que eu, como todos nós, sou feito. Dava-me, é a explicação que encontro, uma certa aflição aquela ampla e quase - eu disse quase - irrestrita liberdade que Londres e o Reino Unido me ofereciam. Um pressentimento também de que eu nascera para, ao menos, conviver por uns tempos com a "lenta, gradual e segura distensão" que ainda estava no porvir verde-oliva e amarelo. Fui-me. E foram cinco anos de Brasil, de trabalhar em jornal (ou jornaleco, pois tratava-se de um, ou o, Pasquim) e ter que lidar com um general censor ou a censura invisível mas mais, muito mais, que pressentível de Brasília. Foi bom enquanto durou. Havia uma certa dignidade em ser tratado, em meu país, como um prisioneiro em liberdade condicionalíssima. Tudo cansa na vida, essa a dolorosa verdade. Em janeiro de 1978, de armas e bagagem, como quer o chavão, embarquei com mulher e filha para Londres, na esperança de, desta vez, ser para ficar. Afinal, eu crescera, quem sabe? Talvez até mesmo, louca improbabilidade, amadurecera. Já era tempo de saber o que queria do resto da vida. Eu queria trabalhar, ir ao teatro e ao cinema, passar por livrarias e lojas de discos, ler e ouvir sem que me amolassem. Praia? Eu já preenchera minha cota. Mais de 30 anos de Copacabana, Ipanema e Leblon, seus antros e botequins, é exagero. Dá ressaca. Das bravas. Nada mais reconfortante do que a extraordinária ausência de areia e ondas em Londres. Importantíssimo: chegar, finalmente, desta vez para ficar, ao estrangeiro, entre os estrangeiros andar e viver, fingir falar e entender a língua. Estava eu finalmente onde eu sempre me sentira. Exato. No estrangeiro. Há um limite para tudo, mesmo e talvez até principalmente, para o Brasil daquela época. Em abril de 78, o então diretor do Serviço Brasileiro, e ex-colega da primeira estada, Vamberto Moraes, me ligou perguntando se eu não queria dar uma passada em Bush House. Nada me fôra mais agradável do que as passagens diárias por esse "predião" no período em que eu existia como gente bebeciana (staff number: 101424). Passei e fui convidado para fazer, semana sim, semana não, uma espécie de crônica de Londres. Claro que topei. Passei a frequentar de novo a velha casa a que retornara. De tanto me verem, passei a cronista (medíocre como sempre, segundo os meus desafetos, com os quais não discordo) semanal. Tamanho foi o meu sucesso como brasileiro bilíngüe, e comportamento razoável diante de uma máquina de escrever e um microfone, que, aos poucos, fui contribuindo com outras jóias de meu seleto repertório. Contribuinte. Era e sou. Nasci para ser contribuinte. Também podem me chamar de freelance, conforme reza, ora e prega meu crachá, que eu não ligo. Como eu lia livros, jornais e revistas, ofereceram-me para fazer um programa semanal de 15 minutos sobre livros e seus autores. Grande produção, digna de um George Lucas em termos radiofônicos: estúdio com hora marcada, técnico de som, script com profissional lendo comigo meu texto, uma tabelinha em que dava, inclusive, para se encaixar efeitos sonoros, entrevistas pré-gravadas e música, se eu quisesse. Eu vivia o tempo perdido que jogara fora em 1972. Nesses tempos, lembremos, não havia mais que 17 brasileiros em Londres disponíveis para esse tipo de colaboração. Sim, claro que exagero. Hoje somos 170 mil, todos loucos por uma - possível que assim chamem - "boquinha". À época, eu estava na jogada, no esquema. A boca era boa e minha. Uma coisa puxa outra. De tanto me verem, passei a fazer outras coisas. Ou melhor, um pouco de tudo. Contratos pequenos, de 3 ou 6 meses, para fazer a transmissão ao vivo, traduzir, redigir e, uma ou duas vezes, escrever, aulas de Inglês pelo Rádio, que, então, ainda as havia (they still existed). E mais. Que eu me lembre, muito mais. Papos ad lib, ou informais, sobre assuntos culturais, uma viagem por vários países da Europa para uma série de impressões gerais. Outra aos Estados Unidos para assuntar as eleições do ano 2000 (é, americanos, dou azar) e mais não me lembro. No entanto, me lembro. Estou naquela idade de lembrar e lembrar. Lembro-me do que, com certa ousadia, atrevo-me a chamar de colegas. Passou, ou por mim passaram, gente que não acaba mais. Se eu as confundia, elas hoje me confundem. Problemas de quem foi ficando e ficando até fazer parte da decoração. A todos aceno, tiro o chapéu imaginário. Daí veio a informática e nela estamos. Eu aqui, ainda e por enquanto. Entendo de pouca coisa. Engano bem, como nossos jogadores que se mandaram para o exterior, na intimidade, admitem. Vou levando, fechando pelas pontas e cruzando para a área. Sei de poucas coisas. Para terminar numa nota que não é, geralmente, a minha: não há mais tempo para eu inaugurar 30 ou 34 anos de trabalho, ou permanência, em lugar novo ou velho. Gostar mesmo foram os poucos anos de "Pasquim", uns 13 ao todo, e esses todos (nossa, como passou rápido!) aqui em Bush House. Com todas as mudanças que vieram. De andar e sala de trabalho ao adeus às máquinas de escrever e aos papéis-banda. Papéis- banda? Isso fica comigo apenas. Ainda não estou só na base do "recordar é viver". Viver não é só isso. Viver, até certo ponto-e-vírgula, é não dar satisfações sobre o papel-banda. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.