A análise social recriada como ficção

Em A Máquina do Tempo, H. G. Wells usa ciência para mostrar que supremacia tecnológica pode levar à guerra e à violência

Por Vinícius Jatobá
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A novela A Máquina do Tempo (1895), escrita pelo inglês Herbert George Wells, que ganha nova edição no País, com tradução de Bráulio Tavares, sintetiza tudo aquilo que a literatura deve ter: prosa elegante e precisa; clareza cristalina de ideias; viço contagiante de imaginação; e personagens com vivacidade de desejos. Há seriedade e humor; sapiência e originalidade; mas também uma vontade pouco disfarçada de agradar que se materializa por uma contagiosa legibilidade da prosa. H.G. Wells (1866- 1946) é um daqueles escritores que contradizem todos os axiomas narrativos que soporizaram a literatura do século passado: com uma técnica sutil e discreta, uma linguagem sem sobressaltos e personagens discerníveis, escreveu gentis peças narrativas que fazem o leitor pensar e sorrir. Lê-lo dá certa tristeza: percebe-se como a literatura hoje se afasta de todas as coisas que são realmente essenciais - o coração das personagens e as peripécias dos enredos.A questão é que nada é mais apartada da vida cotidiana que a imaginação de Wells, um dos mais celebrados autores de ciência ficção. Suas melhores novelas se debruçam sobre as mais improváveis realidades criadas pelos pesadelos da ciência. Lógica e razão brindam o ficcionista com os pontos de partida de suas histórias bem tramadas e estruturadas e criam uma amostra fantástica dos possíveis usos da tecnologia e suas consequências na sociedade e nos indivíduos; no entanto, a ciência não é o assunto de Wells. Sua preocupação, soterrada sob a aparência aventurosa de seus livros, é o dilema moral e ético que aflige a sociedade e os indivíduos quando gozam da posição privilegiada de domar e de transformar a natureza pela ciência. Em todos os livros de ficção científica de Wells, o que se revela como resultado da vitória da tecnologia são a bestialidade, a guerra e a violência extremada. Wells pouco se importa em descrever como a tecnologia de seus livros funciona - não há qualquer descrição detalhada da máquina do tempo, por exemplo. O que interessa ao autor é o que a tecnologia revela de essencial sobre a natureza humana. E não é nada bonito o que ela revela.Seus enredos: Griffin, uma vez invisível pelo trágico uso de sua própria fórmula, e alimentado pela ilusão de impunidade que sua nova condição lhe brinda, comete uma onda de crimes e alimenta macabros desejos terroristas; dr. Moreau, destacado cientista caído em desgraça, uma vez isolado em uma ilha apartada do controle britânico, dedica-se a dissecar seres humanos e manipular seus sentimentos até torná-los criaturas bestiais; dois cientistas, buscando uma solução para a falta de alimentos, inventam uma fórmula que faz animais crescerem - contudo, crianças são afetadas pela fórmula gerando uma bizarra guerra entre bebês gigantes e adultos pigmeus. Wells é demasiado divertido, com sua fauna de monstros e aparelhos fantásticos, mas sua visão de mundo é profundamente amarga. E irônica: em uma de suas novelas, Os Primeiros Homens na Lua (1901), um cientista prefere viver no satélite com alienígenas subterrâneos do que voltar à convivência terrena.Alongar-se muito sobre A Máquina do Tempo é privar o leitor do prazer do enredo. Há engenho na construção da narrativa: em vez de narrar diretamente as aventuras, Wells faz um uso ficcional de um discurso social central da época: as palestras dadas por membros de associações científicas. Em uma dessas reuniões, onde seus membros falam longamente sobre suas experiências e inventos, o narrador do livro presencia a palestra de um homem cujo nome jamais cita em seu relato. Esse homem, de forma resumida e irônica, relata suas aventuras pelo tempo. Após uma breve explicação sobre a quarta dimensão e uma descrição apressada sobre sua máquina, descreve sua aventura em um futuro onde o homem controla a natureza apenas para tornar-se desumano em suas relações: o futuro dominado pela tecnologia suprema é uma sociedade de castas, dividida por tribos, onde um grupo que detém o poder (e controla a superfície) escraviza e domina o restante, que vive no subterrâneo. O próprio corpo do homem se modificou - tem a agilidade de primatas, a altura reduzida. Wells, em uma estratégia narrativa genial, faz com que o retorno ao presente desse homem tenha ocorrido pouco tempo antes de sua própria palestra: isso faz com que seu relato tenha um sabor improvisado, pouco racional e algo emotivo, que cativa o narrador (e o leitor) pelo seu caminho inconclusivo e espantado, como se ele estivesse fascinado com sua própria história enquanto a relembra.O escritor, ainda que motivado pelo desejo de entreter, é um homem de ideias sérias e corrosivas. A literatura é o discurso social reimaginado enquanto ficção; mas, nem por isso é menos pungente e radical. Se for entendido como intelectual todo indivíduo cujo pensamento torna-se ação por ocupar o espaço público - em artigos, conferências, discursos -, Wells é um caso raro de homem de ação, cujas ideias influenciaram sob a máscara ingênua de livros de aventuras. O mais curioso em se tratando desse autor é o quanto sua narrativa tem impacto, mesmo mais de um século depois de sua publicação original. Há algo de essencial, de radical, na revolta que Wells dramatiza ainda que de modo tão apartado da vida cotidiana - com suas máquinas fabulosas e seres incríveis. Mesmo tanto tempo depois, os mecanismos de violência e de dominação descritos em seus romances, a ignorância das autoridades e os fantasmas antiéticos da tecnologia possuem efeito perturbante no leitor. É algo que impressiona, uma vez considerando que Wells, ao contrário de Orwell, sempre circunscreveu suas histórias em ambientes demasiado específicos e concretos. Mesmo que coloque "a humanidade nas garras do impossível", como descreveu Conrad, seu ponto de partida era seu tempo e sua gente. Que a literatura de H. G. Wells tenha sobrevivido só mostra sua força de clássico incontornável e, mais importante, necessário. Vinícius Jatobá é crítico literário

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