Um episódio do passado que parecia perdido para sempre pode surgir subitamente na memória, como se fosse a imagem de um sonho. Isso aconteceu comigo há poucos dias, quando eu andava no centro de Manaus. Tive que abstrair as centenas de barracas de camelôs, a sujeira nas ruas e calçadas, a fumaça das queimadas que cobrem o céu da cidade.Lembrar é abstrair-se do tumulto presente.Quando atravessei a praça da Matriz, me lembrei do fim da tarde de um domingo, em que os dois homens apareceram quase ao mesmo tempo. O primeiro saiu de uma pensão da Joaquim Sarmento; o segundo deixou o hotel América, no outro lado dessa mesma rua coberta de pedras.Eram altos, talvez altos demais para um menino sentado no banco de um carro. O terceiro homem estava ausente: era o meu tio, que tinha acabado de entrar em seu escritório na Joaquim Sarmento para apanhar um documento. Devia esperá-lo dentro do carro, e assim fiz.Os dois homens se encontraram no meio da rua, ambos bem vestidos, elegantes, roupa engomada. Alinhados, como se diz. Um deles, ao tirar o chapéu, mostrou a cabeça calva e avermelhada. O outro, de cabelo grisalho, tinha o rosto dividido por uma mancha preta. Eu era tão jovem que não sabia calcular a idade deles. Quarenta ou cinquenta anos?Me impressionou a deferência quase cavalheiresca do breve, mas cordato aperto de mãos. Trocaram palavras que não pude ouvir; depois se olharam em silêncio. Seis batidas dos sinos da Matriz soaram na tarde que se acabava: mais um domingo sem graça, no começo de uma juventude entediada. O que haveria além da praça da Catedral, além do rio e da floresta? Os dois homens vinham de muito longe, de um lugar que só cabia na imaginação. Forasteiros. E alguma coisa os unia na cidade que lhes era estranha. Só no dia seguinte soube o nome e a profissão deles, mas isso não importa.Despediram-se com um cumprimento demorado, mas não caloroso. O grisalho ofereceu ao outro um cigarro, ambos fumaram em silêncio, enquanto a fachada dos edifícios e as palmeiras da praça perdiam o brilho no pôr-do-sol precipitado do equador.O calvo ficou parado, o chapéu enganchado no sovaco esquerdo, a mão direita solta, o cigarro na boca, a fumaça expelida pelo nariz. O homem grisalho começou a andar na minha direção. Eu ia me abaixar para não ser visto, mas permaneci sentado, pois ele olhava as pedras da rua e caminhava lentamente, como se cada passo, curto e calculado, reiterasse uma decisão grave. Parou a poucos metros do carro; então notei que a mancha no rosto dele era um bigode espesso, que o envelhecia e dava um ar destemido. Em algum momento virou o rosto para a porta do escritório do meu tio.Um mau presságio invadiu meu pensamento, como um ruído no fim daquela tarde. Depois o homem grisalho olhou para a fachada do hotel América e sorriu para alguém que eu não pude enxergar. Ou sorriu para ele mesmo, como acontece com você, com todos nós em algum momento do dia ou da vida.Mais longe de mim, o calvo continuava no mesmo lugar, o cigarro no centro do rosto sério. O chapéu de abas curtas, cinzento e feio, estava no chão.O grisalho ficou de frente para o outro. Assim, parados como dois homens de pedra, eles enchiam a rua de austeridade. Esperavam por alguém ou se despediam em silêncio? Um silêncio demorado, estranho. Não sei por que, senti medo; ou tive consciência de que algo podia acontecer na cidade, na vida.Na porta do escritório apareceu o rosto do meu tio. Acenei para ele com timidez, e sua resposta foi um gesto rápido e brusco, que eu não entendi. Quando ele fechou a porta, a palavra América piscou e acendeu, anunciando a noite.Na única janela aberta do hotel vi, de relance, a cabeça de uma mulher, o cabelo liso e preto tapando a metade do rosto. Parecia uma pintura com pouca luz, um quadro envolto por sombras; pensei no quadro de um amigo que queria ser artista, mas essa visão foi apagada por um estampido seco e forte que me assustou. No meio da rua, o homem calvo segurava um revólver e pisava o chapéu, a bagana ainda na boca. Uma mulher baixa e morena saiu em disparada do hotel América e parou ao lado do carro. Vi os olhos graúdos e escuros no seu rosto jovem e aterrorizado. Saí do carro, procurei o homem grisalho e vi a mulher debruçada sobre o corpo dele, beijando-lhe o rosto. Ia me aproximar dos dois, mas meu tio segurou meus braços e disse: Volta para o carro.Eu queria ficar ali, porque nunca tinha visto uma mulher beijar um rosto ensanguentado.Entra no carro, gritou meu tio. Ele morreu no duelo.Eu olhava a mulher em prantos, beijando o morto, tentando erguê-lo. O outro homem, o calvo, estava quieto. Ninguém ousava aproximar-se dele. Cuspiu a bagana, pôs o revólver no bolso da calça e apanhou o chapéu amassado. Depois cruzou os braços e ficou olhando a mulher debruçada sobre o corpo deitado nas pedras. Hoje, esse gesto me parece insolente.Quando o carro deu marcha-ré, perguntei ao meu tio por que tinham duelado.Paixão, disse tio Ghodor. Amor louco, ciúme... Os homens matam e morrem por ciúme e dinheiro.