Sob o título "Itamaraty quebrou uma tradição" , o articulista Rodrigo Mallea, do jornal argentino La Nacion , diz que "a afirmação do chanceler Celso Amorim de que o presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, entrou na embaixada do Brasil sem qualquer tipo de cumplicidade do governo brasileiro apresenta mais dúvidas do que certezas". Esta é a pergunta que todos os observadores se fazem: por que o Itamaraty decidiu dar refúgio a Zelaya?Desde o fim da Guerra do Paraguai, o Brasil sempre respeitou escrupulosamente o princípio da não-intervenção por razões óbvias: o desfecho penosíssimo daquele confronto fechou um ciclo de interferências nos assuntos internos dos vizinhos, mostrando os enormes custos e as dificuldades políticas dessas empreitadas.Até a década de 90, este foi um cânone rigoroso. Com o retorno pleno da democracia em nosso continente (com exceção de Cuba), todos os países passaram a condenar qualquer golpe ou quebra do padrão democrático de governo. No caso de Honduras, não pode haver dúvida de que um golpe militar precisava ser condenado, ainda que estivesse apoiado por importantes forças políticas locais .Todos os países do continente assim procederam e nada há a discutir.Mais complexo, entretanto, é o caso do retorno do presidente deposto. Por que terá ele tomado esta iniciativa de modo clandestino? Por que terá eleito a embaixada brasileira como refúgio? Como é possível crer que ele se tenha "materializado" na porta da nossa embaixada, como alegou um alto funcionário do Itamaraty? Por que lhe foi permitido instalar-se lá e fazer do local uma tribuna, em vez de manter a discrição obrigatória quando se recebe guarida diplomática? Por que Brasília aceitou o arriscado encargo de tornar-se protagonista em Honduras?Em seu artigo, Mallea afirma que a posição brasileira tem uma explicação. O Brasil procura, segundo ele, valorizar seu papel no cenário internacional e converter-se em interlocutor válido de países em desenvolvimento ou desenvolvidos, até mesmo de nações com antagonismos políticos. Há uma certa verdade nesta avaliação, mas ela não explica plenamente as razões para a decisão aventurosa de abrigar Zelaya.Ele provavelmente decidiu retornar a Honduras para confrontar os golpistas e para sair da posição de xeque em que se encontrava. Até aí, é fácil entender seu jogo político. Acreditar na aparição inesperada de Zelaya à porta da embaixada exige uma credulidade imensa. É até possível que tenha havido uma sondagem rápida à qual o Itamaraty respondeu positivamente, talvez percebendo uma oportunidade de triunfo diplomático. Provavelmente houve um dedo de Hugo Chávez, incentivando uma resposta positiva do Itamaraty e talvez se fazendo de intermediário. Com isso, havia a chance de se criar um embaraço para o Brasil e para o presidente Lula,em especial. De todo modo, o Brasil aceitou que nossa embaixada se transformasse em quartel-general político de Zelaya. Ou seja, passou a intervir de forma militante no confronto entre as facções políticas de Tegucigalpa - o que certamente poderá suscitar temores em vizinhos mais próximos e estratégicos que Honduras. Terá havido uma precipitação ou mesmo um equívoco de avaliação do Itamaraty? O episódio não será dos mais gloriosos para a história da diplomacia brasileira. Creio, porém ,que a fraqueza política dos litigantes hondurenhos acabará levando à busca de entendimento que reconduza a política de Honduras a seus trilhos constitucionais. Para nós, esse seria o melhor cenário. Se, contudo, a lógica do confronto conduzir à violência, a decisão de assumir o risco de dar um palanque a Zelaya poderá tornar-se muito custosa para nossa diplomacia. *Luiz Felipe Lampreia foi chanceler do Brasil
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