PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Ao contrário de Bolsonaro, Eisenhower venceu guerra e não militarizou a Casa Branca

Desinteresse dos civis pela defesa nacional ajuda a criar na República uma distância entre militares e o mundo exterior à caserna

PUBLICIDADE

Foto do author Marcelo Godoy

Caro leitor,

Eleito presidente, Dwight Eisenhower decidiu nomear para a Secretaria de Defesa um diretor da General Eletric: o engenheiro Charles Erwin Wilson. O executivo era conhecido por sua sinceridade, que alguns ministros do governo Bolsonaro parecem emular. Cortou gastos militares acreditando que, com novas armas e tecnologias, seria possível fazer mais com menos. Eisenhower abraçou seu plano e o apresentou no discurso sobre o Estado da União de 1954. O general que vencera a mais importante de todas as guerras e nela comandara o desembarque na Normandia escolhera um civil para o Pentágono.

Dwight Eisenhower, comandante das Forças Aliadas que enfrentaram os nazistas Foto: U.S. National Archives via The New York Times

PUBLICIDADE

E depois manteve a aposta. Mesmo após os críticos passarem a apontar falhas no plano do secretário por confiar nas armas nucleares estratégicas e táticas, em detrimento das forças convencionais, Eisenhower novamente foi buscar na iniciativa privada um substituto para Wilson. Ele teve ainda mais dois homens na pasta - Neil Hoster McElroy e Thomas Gates Jr. -, ambos civis. Mas o general Eisenhower foi além. Fez o diplomata e advogado Allen Dulles diretor da CIA. Dulles foi o primeiro civil a chefiar a agência - ele permaneceria lá promovendo os vitoriosos golpes de estado, como no Irã e na Guatemala, até o fracasso da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, em 1961.

Tudo diferente das coisas por aqui... Surge então a questão: como o grande e velho partido republicano se comportaria se o comandante do Dia D decidisse militarizar a Casa Branca? Nenhum partido político se manifestou contra a decisão de Jair Bolsonaro de nomear mais dois oficiais - ambos da ativa - para o Palácio do Planalto: o general Walter Braga Netto, ex-chefe do Estado-Maior do Exército (EME) e novo ministro-chefe da Casa Civil, e o almirante Flávio Augusto Viana Rocha, que comandava o 1º Distrito Naval (Rio) e agora chefiará a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos (SAE).

Por que um político, como Bolsonaro, precisa ocupar os mais importantes cargos do Planalto com militares? Quais as consequências disso para a República? Qual o risco da identificação do governo com as Forças Armadas, que têm caráter permanente e apartidário e devem se manter distantes da política e das idiossincrasias do governo? Essas questões estão preocupando especialistas civis  -  e alguns militares - em Defesa e cientistas sociais que estudam a caserna e suas relações com a sociedade desde os anos 1970.

Publicidade

O presidente eleito Jair Bolsonaro, durante evento formatura de batalhão de paraquedistas, em novembro Foto: Fernando Souza/AFP

Bolsonaro pode não ter quadros - ou confiar neles - para ocupar os postos civis do Planalto. Pode ainda preferir se cercar de ex-colegas de academia militar, amigos de farda, e realçar a competência nos quartéis como critério da administração. Desde que lançou sua candidatura, o presidente sempre deixou claro que teria um ministério pleno de militares em oposição aos “terroristas nomeados pelo PT”. Essa lógica diz que cada governante tem o direito de escolher sua turma. "Nada contra os civis", disse Bolsonaro. Será?

Em O Espírito Militar, o antropólogo Celso Castro relata a existência de uma oposição entre o "mundo de fora" e o universo da vida na caserna. Castro entrevistou dezenas de cadetes da Academia das Agulhas Negras  (Aman) nos anos 1980. A geração do general Augusto Heleno se formara no período em que a farda tinha prestígio, mas os atuais generais e coronéis viveram na Aman em uma época diferente, com o fim do regime militar e o começo da  Nova República. Nos relatos colhidos por Castro havia um denominador comum: "O 'mundo de fora' é por vezes terreno de situações hostis ou desagradáveis para os cadetes". Bolsonaro veio para redimir o seu mundo.

Atualmente há generais e coronéis em todos os tipos de cargos de livre nomeação no governo. Transformaram-se em especialistas em índios, cinema, mineração etc. Mas nunca nenhum cineasta quis discutir as direções táticas de atuação de uma Divisão do Exército. E eis aqui um grave problema da sociedade brasileira. Não só o isolamento entre o interior da caserna e o mundo de fora cria situações indesejáveis para a República,  mas também o desinteresse dos civis pela Defesa Nacional. São raros os homens públicos como Pandiá Calógeras, Aldo Rebelo e Nelson Jobim.

A distância entre os dois mundos ajuda a explicar por que muitos oficiais defendem o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um militar que executou prisioneiros sob sua guarda, o que devia torná-lo indigno de um oficialato que tem como patronos Osório, Mallet e Caxias. Mas isso não justifica a nomeação do general Mauro César Cid para a representação da Apex em Miami. O colega de turma de academia de Bolsonaro (ambos saíram aspirantes em 1977) e amigo do presidente agora representa o País na Flórida.

“De seus ministros - disse o editorial do Estado A Militarização do Planalto - Bolsonaro espera lealdade absoluta, bem de acordo com o espírito da caserna. É o único critério que, para ele, realmente importa.” Assim, espalhar oficiais pela máquina pública será uma forma de difundir o bolsonarismo pelo País? Os cientistas sociais e historiadores vão se debruçar sobre o fenômeno. O certo é que ninguém precisou aprender a colar os calcanhares, romper a marcha com o pé esquerdo ou saber que o polegar também é dedo e deve, portanto, ser estendido ao se prestar continência para trabalhar na Casa Branca com Eisenhower. Assim como nenhum presidente americano precisou ameaçar chamar o Valter Pires para exorcizar as cabalas contra a democracia. Para o velho general americano, o segredo não estava na força e na ordem. "Somente quando o povo governar a si mesmo é que o governo será bem governado."

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.