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Nas bibliotecas do Exército, nazismo é movimento de extrema direita

Acervo pode ser consultado online e o militar da ativa ou inativo pode ainda consultar seus livros; o presidente deveria conhecer melhor esse sistema, assim não diria mais que o nazismo é de esquerda

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Foto do author Marcelo Godoy

Caro leitor,  todo oficial das Forças Armadas tem acesso à rede de bibliotecas integradas do Exército. O acervo pode ser consultado online – ele abriga milhares de documentos. Monografias produzidas nas últimas quatro décadas pelos alunos da Escola de Comando e Estado-Maior (Eceme) também podem ser lidas no site. O militar da ativa ou inativo pode ainda consultar os livros.

O presidente Jair Bolsonaro devia conhecer melhor esse sistema. De seu celular, o presidente poderia acessar o catálogo online da rede. Os jornalistas vão lhe perguntar sobre o nazismo como aconteceu em Jerusalém? Bolsonaro, em vez de assistir a algum vídeo de Olavo de Carvalho – o guru do governo, como o leitor viu aqui – ou ler algum artigo publicado pelo Instituto Mises, poderia fazer a pesquisa com as palavras-chave nazismo ou nazista na base de dados do Exército. Quase 300 itens apareceriam.

Jair Bolsonaro visita exposição de fotografias no Museu doHolocausto, em Jerusalém; presidente disse'não ter dúvida' de que nazismo é de esquerda Foto: Alan Santos/PR

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Ali Bolsonaro encontraria a trilogia do historiador inglês Richard Evansaqui já recomendado ao leitor pelo jornalista e historiador Marcos Guterman para entender o nazismo – ou as biografias de Hitler escritas pelos alemães Joachim Fest e Volker Ulrich. Todas as obras estão na Eceme. Ali Bolsonaro se sentiria em casa, a começar pelo nome de sua biblioteca: 31 de Março. Ela é parte do Instituto Meira Mattos e fica na praça General Tibúrcio, na Urca, não muito longe da casa do presidente. Algum funcionário da Presidência poderia ir até o amplo salão do biblioteca especializada em história e ciências militares apanhar os volumes. O passeio é agradável.

Se Bolsonaro quiser se ilustrar um pouco mais a respeito do debate sobre o movimento nazista, suas origens e personagens, ele poderia fazer nova consulta atrás da obra da pensadora Hannah Arendt. A pesquisa demora um pouquinho, mas lhe traria a possibilidade de retirar um volume de As Origens do Totalitarismo. A autora mostra que o nacionalismo na era dos impérios coloniais e o antissemitismo na era do racismo ajudaram a montar a ideologia de um partido de extrema direita. Arendt diferenciava nazismo e comunismo pelas suas origens e fins, apesar de classificar a ambos como regimes totalitários.

A obra está disponível para os alunos da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), da Academia Militar da Agulhas Negras (Aman), da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO) e da Eceme. E também para oficiais da reserva ou reformados. Bolsonaro não diria mais que o nazismo é de esquerda, porque o partido nazista traz a palavra socialista no nome.

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Foi em uma Jerusalém que espera as próximas eleições para decidir o futuro de Binyamin Netanyahu que Bolsonaro resolveu se envolver em mais uma de suas polêmicas. Aguardava-se algum pronunciamento sobre o golpe de 31 de Março. Ele não veio pelo Twitter do presidente, mas por um vídeo divulgado pela Secretaria de Comunicação da Presidência com louvores à ditadura militar.

TV Estadão: Planalto divulga vídeo sobre o '31 de março de 1964

Mais uma vez, uma visita à rede de bibliotecas do Exército poderia ter permitido ao presidente e à sua entourage consultarem na EsPCEx, na Aman e na Eceme o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio. Ali veriam que o 31 de Março é o que a ciência política classifica como golpe de Estado, como já mostramos em outra coluna.

No mesmo livro poderia ler que “nas Ditaduras mais moderadas, podem aparecer alguns limites concretos postos por grupos dirigentes subalternos que mantenham uma certa autonomia. Estes limites conferem algum grau de regularidade e de previsibilidade à conduta do Governo”. O livro continua: “Mesmo neste caso não existe nenhuma garantia legal ou institucional que permita dar validade permanente a esses limites. Em relação aos instrumentos de controle coercitivos que empregam e ao grau de sua penetração e arregimentação da sociedade, os regimes ditatoriais diferem notavelmente um do outro”. Talvez, isso lhe explicasse um regime que editou atos institucionais, exilou e baniu opositores, dissolveu partidos políticos, mas mantinha uma oposição consentida e mandato fixo para presidente da República.

Bolsonaro deveria ler ainda os livros do general Carlos de Meira Mattos e conhecer sua história. Um dos ideólogos do regime militar, Meira Mattos acreditava, a exemplo de Oliveira Viana, que em nosso País a lei só consegue prevalecer se revestida por um certo autoritarismo, ainda que moderado, a fim de impulsionar a modernização de nossa sociedade. Quando Castelo Branco decidiu fechar o Congresso Nacional, em 1966, despachou soldados e cabos chefiados por Meira Mattos para evacuar o prédio. O general encontrou o deputado Adauto Lúcio Cardoso (Arena), então presidente da Câmara dos Deputados. “O senhor preste continência a mim, que eu represento o Poder Civil!”. “Pois eu represento o Poder Militar”, respondeu Meira Mattos. E o Congresso foi fechado. Não restava mais dúvidas: vivia-se em uma ditadura.

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Bolsonaro pode não ter interesse nos livros depositados nas bibliotecas militares ou de, ao menos, antes de se referir a fatos históricos fazer algum “esforço na fivela”, aquela capa linda que alguns militares – como lembra um coronel da Aeronáutica – fazem para o documento que precisam apresentar para comandante, descuidando do conteúdo... Pode ser ainda que Bolsonaro pense que “meter o gagá”, ou seja se enfiar em dezenas de livros, seja coisa para cadetes. E, talvez, seja isso mesmo, pois, afinal, segundo o presidente, tudo o que aconteceu no regime militar seria apenas ‘probleminhas’. 

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