COLUNA-Promessa de corte no Orçamento expõe ajuste fiscal torto

PUBLICIDADE

Por FÁBIO SANTOS
5 min de leitura

O anúncio de um contingenciamento de 55 bilhões de reais no Orçamento da União para 2012, feito na quarta-feira passada pelos ministros Guido Mantega (Fazenda) e Mirian Belchior (Planejamento), repetiu um roteiro já tradicional que dá uma boa ideia de como a política fiscal tem sido administrada no país. O governo anuncia cortes no início do ano, projeta uma imagem de austeridade, quase ninguém acredita no volume da economia prometida, mas a maioria se dá por satisfeita porque, afinal de contas, nenhuma maluquice está sendo feita no setor fiscal. Como diz Flávio Salto, economista da consultoria Tendências, o país tem feito um superávit primário (a economia feita pelo governo para pagar os juros de sua dívida) "razoavelmente elevado e a trajetória da dívida pública é declinante em relação ao PIB". Em dezembro, a dívida líquida do setor público representava 36,5 por cento de tudo o que o país produz. Mas não há contenção de fato dos gastos públicos, só o suficiente para dar assunto aos críticos de esquerda da política econômica e para que o mercado não se incomode demais. Veja-se o anunciado corte. Nenhum ator do mercado financeiro o considera negativo. Mas mesmo que ele seja concretizado na íntegra, ainda assim as despesas públicas vão crescer 11,6 por cento em termos nominais em relação ao executado no ano passado. Ainda que seja descontada a inflação, o aumento, de 5,9 por cento, é bem superior ao crescimento do PIB de 2011. Por mais positivo que seja o compromisso em evitar a gastança desenfreada embutido no anúncio de quarta-feira, não há como se falar em rigor fiscal diante dessa alta. De resto, sobram perguntas sobre a viabilidade de segurar todos os gastos contingenciados pelo decreto divulgado por Mantega e Belchior. "Vai ser efetivo?", questiona Salto. A dúvida se explica com facilidade. Conforme já apontaram diversos analistas, o decreto subestima as despesas obrigatórias. Em teoria, elas terão uma redução de 20,5 bilhões de reais. Desse montante, 7,7 bilhões viriam dos gastos com benefícios previdenciários. Isso num ano em que o salário mínimo, que serve de indexador para o piso das aposentadorias e pensões, terá um reajuste de mais de 14 por cento. "Não há como justificar essa estimativa de redução", avalia Salto. O economista Mansueto Almeida lembra que, no ano passado, quando não houve aumento real do salário mínimo, o governo estimou que as despesas do INSS seriam de 276,4 bilhões de reais, o que significaria um corte de 2 bilhões de reais em relação aos 278,4 bilhões de reais previstos no Orçamento. No fim do ano, no entanto, o valor realizado foi de 281,4 bilhões. "Se no ano passado o governo errou em 5 bilhões de reais, por que vai acertar em quase 8 bilhões de reais este ano?", indagou Almeida em seu blog. Dúvida semelhante atinge o 1,5 bilhão de reais de despesas obrigatórias que viriam da estimada redução dos gastos com os benefícios garantidos pela Lei Orgânica de Assistência Obrigatória (Loas). Outro componente das despesas obrigatórias que será cortado são os gastos com subsídios, reduzidos de 10,5 bilhões de reais para 5,4 bilhões de reais. Para se ter ideia da pouca probabilidade dessa diminuição, basta observar que em 2011 essa rubrica apresentou um crescimento de 31 por cento em relação a 2010. O mais provável nesse quesito é que o governo repita o que fez no ano passado: empurre a despesa com a barriga, colocando parte dela em restos a pagar. Como observa Mansueto Almeida, em 2012, o governo terá de arcar com 4,3 bilhões da conta de subvenções do ano passado. FAZER AMANHÃ O QUE SE DEVE FAZER HOJE Deixar despesas como restos a pagar tem sido um dos artifícios comuns para garantir o cumprimento da meta de superávit primário. Em janeiro deste ano, o Tesouro Nacional tinha a liquidar 4,33 bilhões de reais em subsídios que não foram pagos no ano anterior. A mesma operação pode garantir a prometida redução de 10 bilhões em despesas de custeio. Os restos a pagar nessa rubrica vêm crescendo ano a ano. Em 2011, foram pagos 22,33 bilhões de empenhos feitos em anos anteriores, segundo cálculos de Almeida. Algo semelhante foi feito também nos investimentos do ano passado. Segundo cálculos divulgados pelo site Contas Abertas, 93 por cento das dotações para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para este ano, cerca de 42,6 bilhões, são, na verdade, relativas a conta pendentes de períodos anteriores. Aos que estranham o uso desse mecanismo face a Lei de Responsabilidade Fiscal, o economista explica que a regra que impede a transferência de obrigações financeiras de um ano para o outro só vale no último ano de mandato de um governante. Mesmo assim, ressalta Almeida a esta coluna, "o governo tem um caixa de mais de 400 bilhões de reais". Ou seja, mesmo que os restos a pagar fossem nesse volume, a lei estaria respeitada. Igualmente duvidosos são os cortes previstos nos investimentos e emendas parlamentares. No total, foi prometida uma redução de 25 bilhões de reais (note-se que muitas das emendas parlamentares são também investimentos). "O governo vai mesmo arcar com o custo político de não realizar esses gastos?", questiona Flávio Salto. Governistas, com a exceção dos parlamentares petistas, e oposição já estrilaram. INVESTIMENTOS PAGAM A CONTA Segundo Salto, todos os anos, algo entre 20 bilhões e 25 bilhões de reais em investimentos deixam de ser executados. Assim, o corte anunciado, que reduz a previsão orçamentária de 80,3 bilhões para 55,3 bilhões de reais, está em linha com a prática comum. De todo modo, são os investimentos que costumam ser mais penalizados nos cortes, já que as despesas correntes raramente são reduzidas. Em 2011, eles totalizaram 47,5 bilhões de reais. Segundo Salto, a Tendências estima que o crescimento neste ano seja de, no máximo, 4 bilhões de reais. Ora, se há tantas dúvidas quanto à capacidade de o governo entregar o prometido, por que as críticas ao anúncio e a reação do mercado à política fiscal em vigor são tão brandas? A resposta é que, apesar de tudo, como dito no início, a situação está longe do descontrole e muita gente não percebe ou não dá atenção ao que Salto chama de "contabilidade criativa". O exemplo mais gritante dessa prática foi a utilização do BNDES na capitalização da Petrobras em 2010. Em resumo, o que ocorreu foi que o Tesouro Nacional emitiu títulos de sua dívida, emprestou o valor arrecadado ao banco que, por sua vez, comprou ações da Petrobras. Esses papéis voltaram para o Tesouro como receita primária. O mesmo foi feito para que o BNDES comprasse créditos que o Tesouro tinha junto à Eletrobrás. O mercado tem relevado esses e outros artifícios porque, no fim das contas, a situação fiscal, pelo menos no curto prazo, está sob controle. Principalmente se o Brasil for comparado ao que se passa nos Estados Unidos e na Europa. Mas o fato é que o custo do financiamento da dívida pública brasileira segue elevado. "Por mais que isso não afete a solvência fiscal, afeta o crescimento", avalia Salto. Segundo ele, se o objetivo é realmente abrir espaço para uma contínua e sustentável redução nos juros básicos da economia, o ideal seria impor uma mudança estrutural nos gastos correntes do governo. Por exemplo, adotando uma regra intertemporal na Lei de Diretrizes Orçamentárias que limitasse o crescimento da despesa com pessoal. "O teto poderia ser algo como 50% da variação do PIB", propõe Salto. O resultado seria abrir espaço para o investimento público, que é sempre o mais prejudicado pelo ajuste fiscal torto que vem sendo feito.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.