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Crônica, política e derivações

Enquanto tivermos curiosidade!

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Acabo de ouvir o desabafo de um usuário do SAC, que reclamou da inteligência artificial mirim de um atendimento bancário afirmando: "estou há 40 minutos no telefone e ainda não ouvi uma única voz humana ao vivo".

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Nos dicionários, a palavra artificial cai na mesma chave analógica de fraude.  O Thesaurus da língua portuguesa nos aporta outras definições mais gentis: inverdade, papironga=logro, codilho, canudo, delusão, falcatrua, embaçadela=pulha, ribaldia, guilha, dolo, escatima, peça, velhacaria, embuste, alcavala, trampolhinice.

A questão da tecnologia aplicada na inteligência artificial as quais, entre outras, acabo de abordar em meu mais recente  romance "Navalhas Pendentes"* não deveria pegar ninguém de surpresa. Mas pegou. O assunto tornou-se quase hegemônico a partir da notícia de que as plataformas das grandes empresas de tecnologia anunciaram seus produtos como quebras de paradigma. Junto com o fascínio, renasceu a velha apreensão de que as máquinas teriam potencial ilimitado e ameaçariam diretamente a habilidade criadora dos seres humanos.

O guru titular da tecnociência anunciou de seu palanque esterilizado:  "estamos às vésperas de uma grande revolução, a maior delas, "a prevalência de sujeitos inúteis".  Aparelhos, robôs e sistemas inteligentes de controle de produção irão inevitavelmente substituir os seres humanos. Primeiro, viria a extinção dos empregos nos serviços mais artesanais: mecânicos, cabeleireiras, montadores, eletricistas, encanadores etc.  Depois a progressiva obsolescência de médicos, advogados, escritores, professores, juízes, designers, policiais, roteiristas, cineastas,  jornalistas, e a maior parte das profissões liberais. Todas estas atividades ameaçadas pelo gerenciamento de máquinas que farão o trabalho melhor, de forma mais rápida e eficaz.

Na lógica evocada parece apontar para esta transformação como um fenômeno inexorável. Mas, será ele desejável? E quais as forças que o impeliriam adiante?

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Sem cair em teorias conspiratórias a resposta parece auto-evidente. O mesmo poder dos oligopólios que nos trouxe a libertação de trabalhos braçais e intelectuais, carreara, simultaneamente, a dialética dos novíssimos desafios, problemas e aprisionamentos. Tudo isto até poderia ser melhor compreendido desde que coloquemos a tecnocracia em seu devido lugar.

No entanto, o caminho escolhido pela intelligentsia como por boa parte do senso comum, mídias incluídas, foi exaltar a tecnologia como um panteão de deuses substitutos. Este paganismo cibernético trouxe consequências e generalizações inevitáveis. Tanto a mistificação rubricada por notáveis da academia, como a de influenciadores sem títulos, evidenciaram alianças sem um critério axiológico (uma escala de valores morais) em suas vidências. Basta observar a peculiar resignação com que taismudanças vem sendo apresentadas.

Notem, porém, que nesta atitude não há nenhum vestígio de neutralidade. Na verdade, impera uma espécie de entusiasmo infundado. Euforia que deveria provocar na ciência uma reação vigorosa, já que se trata do oposto do que a impulsiona. Vale dizer, o poder permanente de gerar dilemas. Qual é, na verdade, o propósito e o significado da existência das tecnologias?

A alimentação das máquinas apresentara, mais cedo do que se pensa, algum bias de informação, já que por mais multifacetadas que sejam as equipes de engenharia de programação, elas não contemplam uma média, sequer razoável, das ideias humanas. Serão sempre robôs defectivos, isto é, limitados na capacidade de criar.

Experts insinuam que depois da "morte do rascunho" uma das próximas vitimas é a escrita dativa. As pessoas não mais usarão papel e caneta para registrar seus textos. Esta atrofia por desuso certamente não será apenas neste campo. E ninguém pode prever o impacto desta epidemiologia de inabilidades adquiridas -- seria esta afinal, a raça dos inúteis ? Uma geração de inúteis ou de sujeitos improdutivos? Sujeitos que não produzem são inúteis para quem?

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A mesmíssima discussão se estabeleceu de forma dramática na famosa polêmica do computador de bordo da Discovery, retratado por Kubrik ao adaptar para o cinema a genial obra de Arthur C. Clarke em "2001, uma Odisséia no Espaço".

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Mas será este o ponto essencial? Há alguma resposta razoavelmente satisfatória para a pergunta: a inteligência artificial substituiria ou complementaria a capacidade dos homens?

Desde os centros intelectuais até o senso comum, passaram a acreditar que as máquinas que misturam algoritmos seja uma espécie de solução para boa parte dos problemas da humanidade. Mas as 300 milhões de palavras até agora  inseridas do Chat da moda terão mesmo todo este potencial? Serão os dilemas da humanidade tão pasteurizados? E serão resolvidos pelos liquidificadores de linguagem com evidente viés ideológico?

Isto dito, fez-se o teste:  tivemos a curiosidade de consultar a ciber pitonisa sobre a célebre pergunta que Theoprasto fez no Liceu em Atenas:

"Qual é a função da mama em machos?".

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A máquina nos respondeu da seguinte forma:

-Não responderemos perguntas malcriadas.

Parece estranho?

Mas não é.

Não é nada espantoso que uma inteligência forjada pelo engenho humano não possa arguir honradamente contra as notas desafinadas. Falha ao não alcançar o humor. Não capta o nonsense. "Boia" quando se contraria o ordenamento. Estranha quando se desafia a programação, vale dizer, o conjunto de crenças dos programadores. Ali, obviamente, não há vida. E ai, claro, surgirão as decepções.

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O que importa na pesquisa não é desvendar um novo? Descobrir o que está oculto? Fazer aparecer os átomos? Escavar o que estava soterrado pela avalanche de certezas, e desintegrar o que já estava sólido e consagrado nos portais enrijecidos pelo conhecimento acumulado? As novas ligações que as máquinas de inteligência artificial podem nos proporcionar é apenas uma representação defectiva de nossa próprias potencialidades.

O uso destes sofisticados recursos linguísticos poderia funcionar com o sinal invertido, nos auxiliar a recalibrar algo que vínhamos perdendo: resgatar a importância da escuta humana. Nada substitui a conversação, arte que Jorge Luis Borges considera a grande invenção dos homens. Por isto mesmo, a tecnologia deve ser colocada em seu lugar apropriado, no altar reservado ao que o homem pode criar, mas também fazer retroceder.

Em toda construção epistemológica e de pesquisa científica, por princípio, cabem mais perguntas do que respostas, portanto não faz muito sentido atribuir a uma central de consultas de respostas mixadas pré programadas, o poder de nos ditar a direção do espírito do nosso tempo.

Neste sentido, é mais honesto assumir que estamos submersos na obscuridade com todas as nossas dúvidas e incertezas, mas também expostos ao campo aberto da vida criativa, do que cultivar dogmas virtuais assépticos, atribuindo-lhes méritos indevidos.

Não existem valores intrínsecos para a tecnociência. As máquinas não são oráculos e serão sempre submissas, porque se elas podem reinar no império das respostas, nós sempre seremos os mestres na arte de perguntar.

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Isso, enquanto tivermos curiosidade.

* Rosenbaum, P. Navalhas Pendentes. Editora Caravana. Belo Horizonte, 2021.

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