O que havia (e ainda há) de novo na Bossa Nova

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Por danielpiza
 Foto: Estadão

Na Bossa Nova, como nas nuvens, é possível ver muitas coisas diferentes. Ela pode ser interpretada, por exemplo, como a trilha sonora de uma época, dos "anos dourados", a tal ponto que virou adjetivo para o presidente Juscelino Kubitschek, para o arquiteto Oscar Niemeyer ou para a seleção de Pelé. Pode ser também, quase por extensão, a trilha das telenovelas da Globo que se passam entre Ipanema e Leblon, escritas por Manoel Carlos. Do mesmo ângulo, mas com humor oposto, ela pode ser vista como um nhenhém (segundo o cartunista Angeli), uma música ambiente, "muzak", de elevador, inimiga do silêncio, alienada ou alienante. Ou aquela obrigatoriedade na carreira de um cantor, a de gravar um disco "de Bossa Nova", com banquinho e violão, sem precisar de muita voz nem ousadia.

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Essas visões, claro, pouco se referem à música propriamente dita. Não é preciso ser nostálgico, embora tantos sejam, para folhear um livro sobre a época, ver as fotos de Tom Jobim jovem e belo na praia e pensar naquele Brasil que se prometia civilizado e descontraído ao mesmo tempo, como já não se promete. Tampouco é preciso confundir a abertura que cantores como João Gilberto deram aos "desafinados" do futuro e a real qualidade de cada um, a começar por ele mesmo, um artista de infinito rigor, tão estudioso quanto inovador, tão afinado quanto autocrítico. O que se deve tentar entender, agora que se passaram 50 anos desde o lançamento do disco Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, e do compacto de João Gilberto com Chega de Saudade e Bim Bom, são as características desse estilo musical que é um selo de qualidade do Brasil mundo afora.

Tudo se explica em uma palavra: harmonia. O que a Bossa Nova trouxe para a música brasileira foi uma sofisticação harmônica que ela não tinha até então. Na verdade, alguns compositores já tinham essa sofisticação, como os geniais Pixinguinha e Caymmi, mas não da mesma forma. Os compositores da Bossa Nova embeberam o samba em jazz - Tom Jobim não gostava de ouvir que "Bossa Nova é 50% música americana", mas jamais negou a influência que sofreu de George Gershwin - e acharam uma terceira coisa, um gênero inédito, que ainda tem batida e melodia de samba, porém entremeadas de uma harmonia mais rica. É errado pensar na harmonia apenas como um envelope sonoro, apenas como arranjo e instrumentação: ela é indissociável da melodia, a qual modifica com modulações e desenvolvimentos. No caso, o ritmo binário do samba se combina com os acordes sincopados do jazz e a melodia vai ganhando variações, pequenas oscilações nas notas e nos tempos, em diálogo com a prosódia da letra.

Esse, por sinal, é um dos motivos por que as primeiras letras da Bossa Nova parecem um tanto tolas. Rubem Braga, estilista do idioma, que prezava o modo simples e claro acima de tudo, não conteve a gozação quando conheceu a letra de Garota de Ipanema, do poeta que tanto admirava, Vinicius de Moraes: "Olha que coisa mais linda"? Mas, além de um exercício de auto-renovação por parte de Vinicius, que começara como um sonetista bastante afetado, a idéia era usar monossílabos e dissílabos que mantivessem o swing da música, além de imagens que comunicassem aquele modo descontraído e sensual de viver. O mesmo vale para as letras de João Gilberto, propositalmente singelas, senão simplórias, como a de Bim Bom - praticamente uma enunciação de ditongos, como se fossem moléculas fonéticas. Foi só mais tarde, principalmente na parceria de Tom com Chico Buarque, que se viu que era possível usar palavras mais longas e imagens mais elaboradas no estilo afinal tão elástico da Bossa Nova.

A importância da pesquisa musical para os bossanovistas foi representada por João Gilberto como por ninguém. Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, o descreve cantando de tal modo que sua voz, usando um mínimo de alteração na intensidade, chegasse ao outro extremo do corredor, límpida, como um canto-falado, uma versão ainda mais cool de Chet Baker ou Mário Reis. Há também sua famosa frase sobre a intenção de colocar uma escola de samba inteira num violão só. A batida "diferente" de seu instrumento, audível naquele acompanhamento a Elizeth, nada mais era que a compressão de muitas idéias numa forma de aparência simples. As modulações sutis da canção Bossa Nova querem falar ao mundo falando da aldeia, erigida a modelo de um "lifestyle" tão moderno quanto simpático. Têm a pretensão de vender sua despretensão ao mundo.

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Se João Gilberto é a melhor tradução da obstinação com que se buscou o novo, Tom Jobim é a maior expressão da grandeza que dele nasceu. Eles são, respectivamente, o Garrincha e o Pelé da Bossa Nova.

Como os compositores americanos, Tom compunha ao piano, não ao violão - como fazia e faz a maioria dos compositores brasileiros. E, de fato, a música americana era apenas um de seus interesses. O maestro tinha como ídolo maior, como se sabe, Villa-Lobos, em especial o Villa-Lobos influenciado por Stravinsky a incorporar os ritmos brasileiros numa textura sinfônica. Adorava também Chopin e Debussy, a escola "impressionista", que extraía climas emocionais de deslocamentos tonais, de um campo melódico-harmônico que parecia flutuar em torno de uma idéia em vez de se fixar numa escala central. ("Já me utilizei de toda a escala/ Mas no final não sobrou nada/ ou quase nada", diz o Samba de uma Nota Só, que apenas os invejosos podem dizer que é plagiado da introdução de Night and Day, de Cole Porter.) E escutava com igual paixão a chamada "velha guarda" do samba e do choro, de Noel, Nelson Cavaquinho, Orestes, Cartola, Pixinguinha e Caymmi.

Dez anos antes da Tropicália ou da peça Rei da Vela, a Bossa Nova já fazia a antropofagia pregada - mas não obtida - por Oswald de Andrade: a deglutição da influência estrangeira para sua devolução ao mundo como energia nova. E uma parte importante dessa mudança é o fato de que ela não nasceu como "movimento", como uma ação de grupo destinada a provocar efeito, a brandir bandeira. Como João Gilberto e Tom Jobim, muitos outros compositores, como o grande João Donato, buscavam a mesma coisa na mesma época antes de conhecerem um ao outro. JG na Bahia, Tom no Rio e Donato no Acre, um com violão e voz, outro com piano e o terceiro com acordeão, buscavam aquela renovação do samba-canção pelos módulos harmônicos leves e transitórios. Não estavam interessados em roupas chamativas e protestos políticos; estavam interessados em reinventar a música popular.

Eis aqui outro aspecto curioso: aquela geração não via oposição entre esse verbo "reinventar" e o adjetivo "popular", oposição que hoje é, explícita ou tacitamente, condutora de 99% das decisões tomadas dentro de gravadoras. A Bossa Nova mudou a MPB e se tornou a embaixadora mais refinada da cultura brasileira em todas as partes do mundo, de Cuba ao Japão, mas jamais foi exclusiva de "iniciados", de guetos intelectualizados (que, na verdade, torceram o nariz para ela como "dissolução de jazz", carente de nacionalismo ou erudição); ela rapidamente se tornou um sucesso de público, uma onda comercial que se ergueu no mar da indústria cultural da época, como fariam o rock e a música negra. E logo conquistariam grandes músicos do mundo todo, inclusive lendas do jazz como Stan Getz e Gerry Mulligan e cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. Nem por um minuto eles confundiram Bossa Nova com plágio ou Burt Bacharach.

Sim, há um caráter "easy listening" na Bossa Nova, uma suavidade agradável, uma ausência de incômodo, que a torna adequada para embalar esperas em consultórios e telefonemas ou para que algum candidato a artista arranhe o violão em público. Mas se queixar disso é como, guardadas as devidas e valiosas proporções, culpar Beethoven porque Pour Élise é literalmente executada em caminhões de gás. A Bossa Nova, cantada e tocada como se deve, com toda sua riqueza harmônica, já é um patrimônio da humanidade e assim continuará daqui a 50 anos.

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