Políticos que se refugiam na lei para defender sua conduta imoral. Pais que engravidam ou matam as próprias filhas. Sacerdotes que cometem o pecado que mais condenam. Atletas que sofrem contusões e retornam para cumprir façanhas ansiadas pela cidade. Jovens que explodem em violência contra seu ambiente social. Guerras que são declaradas por orgulho e não por defesa. Doenças que afligem os bons no apogeu de sua forma. Qualquer fonte atual de notícias, em papel ou meio eletrônico, está repleta de histórias como essas que os clássicos gregos contam há 25 séculos. Não espanta, portanto, que novas traduções e estudos dessas peças saiam periodicamente nos mais diversos países e, cada vez mais, no Brasil dos últimos anos.
As tragédias gregas são como Filoctetes, o craque do arco e flecha, que vive ilhado com uma ferida que jamais cicatriza e é procurado pelo enviado de Odisseu, Neoptólemo, para ajudar na vitória da Guerra de Troia. A civilização sempre retorna às perícias e às dores desses textos para renovar percepções e rediscutir valores. Filoctetes, de Sófocles, é justamente a peça que acaba de ser lançada em nova tradução, de Trajano Vieira, pela editora 34. O grande crítico americano Edmund Wilson, em ensaio incluído na edição, resume com a clareza de sempre os traços dos personagens de Sófocles: "Eles causam horror, mas provocam pena. Filoctetes é desse tipo; (...) para Sófocles, sua dor e ódio têm uma dignidade e um interesse."
Outros livros que acabam de ser publicados são A Fragilidade da Bondade, de Martha C. Nussbaum (Martins Fontes), um estudo consagrado sobre a ética nos trágicos e em Platão e Aristóteles; Agamêmnon, de Sêneca (Globo), a versão do estoico romano para a peça de Ésquilo; e A Morte de Empédocles, de Hölderlin (Iluminuras), poema trágico do romântico alemão. Eles vêm se juntar a trabalhos como as traduções de Lawrence Flores Pereira para Antígona (Topbooks, 2006) e a de Flavio Ribeiro de Oliveira para Aias (Iluminuras, 2008), também de Sófocles; a do mesmo Trajano Vieira para Agamêmnon, de Ésquilo (Perspectiva, 2007); e o volume Hipólito e Fedra, em que Joaquim Brasil Fontes traduziu Eurípides e Sêneca, além de Racine (Iluminuras, 2007). Isso vem somar muito ao corpo mais conhecido de traduções feitas por Mário da Gama Kury e Jaa Torrano, entre outros nomes.
A tradução de Filoctetes só reforça a dignidade e o interesse do teatro de Sófocles. Embora seja menos conhecida do que Édipo Rei e Antígona, ela também é uma obra-prima. Wilson nota que seu enredo não coincide com o que se costuma imaginar a respeito de uma tragédia grega. Não há catástrofe. Não há conflito entre homem e mulher. Não há oposição direta a um grupo social ou a um inimigo inequívoco. Tudo se passa mais como uma conversa ríspida entre Filoctetes e Neoptólemo, que tenta convencer o antigo aliado a voltar ao combate. Detentor das armas de Hércules (ou Héracles), que as deixou como herança por sua ajuda na hora de morrer, Filoctetes foi mordido por uma cobra ao se aproximar de um santuário. Punido por sua arrogância e desobediência, vê que a ferida não fecha, emanando um fedor que impede que seja sacrificado ou levado. Como é comum em Sófocles, a tragédia já aconteceu quando o drama começa.
O filho de Aquiles chega, acompanhado de Odisseu, que se esconde para não provocar a ira de Filoctetes, e tenta persuadi-lo da importância de lutar pela pátria, já que heróis como Aquiles haviam sido vencidos. Os dois juntos seriam responsáveis pela derrota de Páris, príncipe de Troia. Filoctetes se mostra inflexível. A ferida dói muito e ele entrega o arco para Neoptólemo segurar. Odisseu diz ao rapaz para fugir, mas ele se nega. Tal confiabilidade começa a mudar os sentimentos do arqueiro quando, à maneira clássica, Héracles aparece para exortá-lo a guerrear, pois só saindo da ilha poderá ser curado. Mas essa intervenção, "deus ex machina", é menos a resolução do conflito do que a confirmação de que Filoctetes reconheceu no novo amigo alguém justo.
O que Filoctetes consegue, na realidade, é um pacto entre seu interesse pessoal - ver o fim da "agrura de sua úlcera" e se tornar um herói de guerra - e o interesse coletivo, a vitória sobre Páris. Mas esse caminho só se abre porque o convencimento se deu de forma civilizada, não pela força ou pelo apelo, mas pelo argumento e pelo respeito. Como ocorre nas peças mais famosas de Sófocles, a leitura individualista, que vê a tragédia como resultado de impulsos incontíveis de agressão ou atração, não basta. Freud criou seu conceito de Complexo de Édipo a partir dele, diagnosticando na natureza humana essa espécie de fardo primordial, tão inerradicável quanto o pecado original da doutrina cristã. Sófocles, porém, não era tão fatalista. Tampouco pode ser lido apenas pelo conceito de Hegel de que a tragédia se concentra no conflito entre público e privado. Há mais coisas entre Estado e cidadão do que a mediação racional de uma ideologia.
O ponto de virada tem a ver com a compaixão, não entendida como sentimentalismo acrítico, mas como reconhecimento humanista. "Apiedamo-nos de Filoctetes, abandonado sem amigos e com dor em uma ilha deserta", escreve Martha C. Nussbaum. "Apiedamo-nos de Édipo, porque a ação apropriada a que seu caráter o levou não era o crime terrível que, por ignorância, cometeu. Apiedamo-nos de Agamêmnon, porque as circunstâncias o forçaram a matar a própria filha, algo profundamente repulsivo a seus próprios compromissos éticos, bem como aos nossos. Apiedamo-nos de Hécuba, porque as circunstâncias a privaram de todas as relações humanas que conferiram sentido e valor à sua vida." E a autora conclui: "Pela observação de nossas respostas de piedade, podemos esperar aprender algo mais sobre a (...) vulnerabilidade de nossos próprios compromissos mais profundos."
A vulnerabilidade da condição humana é o assunto central do livro de Martha, A Fragilidade da Bondade, publicado originalmente em 1986 e nunca traduzido no Brasil. Ela está interessada em entender quais as consequências éticas do fato de que, por mais virtuoso que seja o indivíduo, ele jamais está livre de sofrimentos e azares. A "bondade" do título não deve ser vista como generosidade ou gentileza, mas como uma disposição para praticar o bem, para não fazer mal aos outros e ajudá-los na medida do possível. Por mais escrúpulos que um ser humano tenha e exerça, ele é frágil diante da força das circunstâncias e contingências. Não é senhor absoluto de seu destino, como pregam heroísmos modernos ou livros de autoajuda. No entanto, mesmo em meio a uma guerra em que seja obrigado a matar, o homem tampouco é vítima simples do destino: sempre lhe restará um resíduo de escolha moral, de decisão autônoma.
Tal estado ambivalente é discutido com enorme brilho pela autora a partir dos pensamentos de Platão e sobretudo Aristóteles, que dizia que a virtude se encontra no meio-termo, na moderação, na conciliação de contrários. Nussbaum analisa as peças trágicas como demonstrações desse modo de pensar, com o qual, em linhas gerais, está de acordo. O que tenta - e consegue - colocar são sutilezas no raciocínio, aproximando-o de uma escola mais pragmática, americana ("piedade significa ação"), que rejeita o pensamento idealista de um Kant porque ele propõe que a moral viva numa esfera intocada pelo acaso. O que a atrai no pensamento grego é a possibilidade de contestar os deuses, de fomentar uma sociedade pluralista, crítica, e não a cultura culpada cristã, em que os desejos são afastados como antiéticos ou contraproducentes.
Filoctetes, porém, sabe das coisas, porque aprendeu com o sofrimento, como Édipo em Colona. "Engano, fato comum na longa vida humana", diz ele ao jovem Neoptólemo. Que ambos tenham conseguido um consenso, uma superação do engano mútuo para a obtenção de um trunfo, continua sendo menos comum. Políticos, sacerdotes, doenças e violências estão aí, no noticiário de todo dia, para nos lembrar de que a falta de escrúpulos e o poder das casualidades não podem ser controlados. E que a retórica da moderação muitas vezes não passa de artifício para esconder as verdades mais dolorosas. Os gregos não nos ensinam a viver pior ou melhor; eles nos ensinam que viver é essa eterna confusão entre estar sujeito e ser sujeito, a qual podemos diminuir com a reflexão. Para o bem ou para o mal, ainda falamos grego com nossos impulsos.