Desabamento foi uma ‘tragédia’, e Salvador tem igrejas em situação até pior, diz professor da UFBA

Igreja de São Francisco está entre construções de Salvador consideradas como ‘patrimônio da humanidade’; especialista diz que desabamento demonstra problema complexo da preservação em todo o País

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Foto do author Priscila Mengue
Atualização:

O desabamento do forro de uma das mais importantes construções do barroco brasileiro - em Salvador, deixando uma vítima e feridos nesta quarta-feira, 5 - voltou a chamar a atenção para problemas na preservação do patrimônio cultural no País. A Igreja de São Francisco é tombada e parte do conjunto de construções históricas da capital da Bahia reconhecido como patrimônio mundial (“da humanidade”) há 40 anos.

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“É uma tragédia, e umas situações mais graves que já tivemos no centro histórico”, descreve o arquiteto e urbanista Nivaldo Andrade, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do conselho consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Tem diversas igrejas tombadas no centro histórico com problema, algumas melhores e outras piores que essa”, completa.

O balanço da Defesa Civil de Salvador mais recente aponta, por exemplo, ao menos 2,7 mil casarões e outras construções históricas do centro e entorno em risco. O Iphan também chegou a reconhecer problemas em imóveis na capital da Bahia recentemente, que estaria com a preservação “comprometida”. Andrade destaca, contudo, que a situação se repete nas demais cidades históricas brasileiras.

Entre especialistas, a construção que desabou é considerada uma obra-prima. “É um edifício que se esperava seguro, por ser aberto à visitação turística. Pessoas de todo o mundo vinham visitar e pagar para isso”, completa Andrade.

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O Iphan divulgou uma nota em que afirma ter notificado, em 2022, a Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil (proprietária e responsável pela igreja) pela necessidade de conservação. Também afirmou que iria fiscalizar a situação do imóvel nesta quinta-feira, 6, após ser comunicado de problemas no forro há cerca de dois dias, mas que a notificação não indicava emergência.

Para o professor da UFBA, a situação demonstra a importância de mais investimentos públicos e privados para a preservação, que é um problema “complexo” e de décadas. Não só para a recuperação do patrimônio, mas até para a prevenção de novas mortes. “O turismo em Salvador é de festa, praia e, também, de patrimônio. É uma questão para refletir”, diz.

Andrade recorda que alguns outros desabamentos de construções históricas já haviam deixado vítimas na cidade na última década, como na Ladeira da Preguiça, em 2015. Outro caso em Salvador que chamou a atenção recentemente foi do desabamento de um casarão emblemático, mencionado até mesmo em um livro de Jorge Amado. “Infelizmente, se gasta mais para promover show em praça pública para artistas midiáticos.”

Igreja do Convento de São Francisco, no Pelourinho, em Salvador Foto: Fábio Marconi/Divulgação PMS

O problema não é restrito, contudo, à capital baiana: as demais cidades históricas brasileiras enfrentam problemas de preservação diversos, desde infestação de cupins até problemas estruturais. Em 2022, por exemplo, um deslizamento atingiu casarões em Ouro Preto, também em área reconhecida como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

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O especialista descreve a igreja como uma das mais importantes do barroco brasileiro, conhecida especialmente pela rica ornamentação do interior, parcialmente recoberta por uma película à base de ouro. “Sem sombra de dúvida, está entre as mais importantes e significativas”, aponta. “É uma tragédia a perda de um bem assim.”

Andrade diz que a necessidade de restauro já estava clara há anos e, reitera, que a responsabilidade era da Cúria (proprietária do imóvel). Também defende reforços na equipe técnica e no orçamento, para ações de notificação, prevenção e restauro na esfera pública. “É um equívoco do senso comum achar que o Iphan deve restaurar: é o proprietário que deve. Se demonstrar que não tem condições , o Iphan deve investir recursos públicos”, explica.

Desabamento de forro deixou vítima e feridos Foto: Defesa Civil de Salvador

Sobre o restauro, aponta que precisará ser feito um levantamento detalhado, com a recuperação do material que desabou. “O material precisa ser todo enumerado, cadastrado. Precisa ser feito com muito cuidado, mapeado cada fragmento.”

Datada do período entre os séculos 17 e 18, a igreja é considerada “uma das mais singulares e ricas expressões do barroco brasileiro”, segundo descrição do Iphan. Também tem elementos rococó e neoclássicos.

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A construção é recoberta externamente de esculturas e relevos, com folhagens e frutos de “talha dourada”, isto é, madeira recoberta de uma fina película feita à base de ouro. A ornamentação levou décadas para ser completa. Há, também, revestimentos com azulejo. Além da importância histórica e religiosa, o local é um dos principais pontos turísticos de Salvador.

Interior da igreja é ornamentado em 'talha dourada', com madeira revestida por película recoberta de ouro Foto: Defesa Civil De Salvador

A Polícia Civil da Bahia divulgou que vai averiguar o caso da Igreja do Convento de São Francisco. Outras cinco pessoas ficaram feridas. Nas redes sociais, a Igreja repostou uma mensagem em que lamenta a morte da turista paulista.

Reforça-se que a Igreja e o Convento de São Francisco são edificações de propriedade privada, cuja responsabilidade pela manutenção e pela preservação são de seu proprietário, assim como a gestão de seu uso.

Iphan disse à Unesco que centro histórico de Salvador está ‘comprometido’

Em relatório à Unesco, de 2023, o Iphan reconheceu problemas na preservação da cidade, o que é de responsabilidade dos proprietários dos imóveis. A instituição diz que “o complexo arquitetônico constituído por exemplares religiosos, civis e militares que remontam ao período colonial de Salvador como a primeira capital do Brasil” está “comprometido” (as demais opções eram “preservado”, “seriamente comprometido” e “perdido”). “A descaracterização dos edifícios do conjunto é lenta mas constante, e o abandono de exemplares significativos compromete a preservação”, explicou.

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A igreja é de arenito lavrado, com duas torres simétricas, posteriormente recobertas por pedras brancas e azuis trazidas de Portugal. Há pesquisadores que apontam problemas na conservação há quase 100 anos, com intervenções que mitigaram alguns problemas, assim como outras que alteraram características.

No relatório à Unesco de 2023, o Iphan reconhece problemas de preservação, com parcial degradação. Defende, contudo, que não há impacto significativo.

“As características construtivas da maioria dos edifícios face às condições climatéricas desfavoráveis, à falta de manutenção e ao abandono dos edifícios, promovem o crescimento de pragas que destroem estruturas construídas. Ervas daninhas, roedores, pragas de insetos, pragas e microrganismos de aves são presenças frequentes e impactam negativamente a propriedade protegida”, admite. Também fala em uma “falta de coordenação entre as instituições governamentais relevantes”.

Essa situação é ainda mais preocupante diante das mudanças climáticas, com a intensificação das chuvas e ondas de calor. “As altas temperaturas, a elevada umidade e a degradação dos edifícios aumentam consideravelmente o ataque de pragas e microrganismos aos imóveis e propriedades móveis que compõem o patrimônio mundial”, aponta. “A degradação pelo abandono, o vandalismo, a ocupação ilegal do espaço e as construções ilegais são ameaças atuais à preservação”, diz em outro trecho. Também reconhece problemas “frequentes” de destruição pontual deliberada do patrimônio.

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Por outro lado, o instituto responde que “grandes investimentos” foram realizados nos últimos anos. Em outubro, por exemplo, o Iphan havia anunciado investimento de R$ 1,2 milhão para a elaboração de um projeto de restauro da igreja.

Igreja é uma das mais visitadas por turistas em Salvador Foto: Fábio Marconi/Divulgação PMS

Salvador tem histórico de problemas

O centro histórico virou patrimônio mundial em 1985. À época, a Unesco apontou o “alto grau de autenticidade em termos de localização e configuração, formas e desenhos, materiais e substâncias”.

Já o Iphan define o conjunto urbanístico e arquitetônico como “um dos mais importantes exemplares do urbanismo ultramarino português”. “Com seus becos e ladeiras - acolhe um dos mais ricos conjuntos urbanos do Brasil, implantado em acrópole e distinguindo-se em dois planos as funções administrativas e residenciais (no alto) e o porto e o comércio (à beira-mar)”, descreve.

O balanço da Defesa Civil de Salvador mais recente aponta ao menos 2,7 mil casarões e outras construções históricas do centro e entorno em risco, dos quais cerca de 15% com riscos alto (288 construções) e muito alto (117) para desabamento ou incêndio. Em alguns casos, as edificações tiveram até de ser demolidas. O levantamento não informa quantos desses imóveis estão no perímetro reconhecido pela Unesco.

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“O Centro Histórico de Salvador abriga imóveis antigos que, ao longo dos anos, passaram por um acelerado processo de degradação principalmente pela falta de manutenção de seus proprietários. Muitos destes imóveis estão totalmente abandonados, representando risco iminente para moradores e transeuntes”, diz relatório da Defesa Civil.

Por outro lado, Salvador já esteve duas vezes na lista bianual do World Monuments Watch, voltada a bens com “necessidade crítica de proteção”, realizada a partir da avaliação do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e de um painel independente de especialistas. A capital baiana esteve na lista de 2012.

À época, a organização afirmou que “o declínio econômico, o crime, a infraestrutura decadente e outros desafios deixaram o coração histórico da cidade vulnerável”. Igualmente em 2016, incluiu a Ladeira da Misericórdia na lista, pois “a rua encontra-se majoritariamente abandonada e com restrições de acesso”.

Embora não esteja na lista da Unesco de patrimônio mundial em risco, denúncias já foram feitas na organização. Em 2015, por exemplo, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU/BA), o Departamento da Bahia do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-BA) e o Sindicato de Arquitetos e Urbanistas do Estado da Bahia (SINARQ-BA) denunciaram à organização o que chamaram de “degradação” do centro histórico de Salvador após 31 imóveis serem demolidos depois de chuvas intensas e, ainda, do Governo do Estado declarar risco de deslizamento e desabamento de imóveis.

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