Sim, as impressões de minha chegada a Seattle ontem foram equivocadas. Redondamente equivocadas. São seis da manhã. Tá frio prá xuxu. Frio de deixar os dedos do pé doendo dentro das meias grossas de lã. Mas o frio não impede cerca de cem homens e umas poucas mulheres de lotarem o pátio de uma organização que há nove anos trata de ajudar imigrantes latinos a encontrar trabalho informal na cidade. Numa hora em que o centro da cidade está às moscas, a sede da Casa (sigla de Centro de Ajuda Solidária aos Amigos) Latina parece ser o local de uma animada festa à fantasia. Mas com todos usando a mesma fantasia: de hermanos com rostos de sono, pesadas jaquetas, gorros e cachecóis. Por volta das 6h30, um dos organizadores sai de uma casa e começa a berrar em espanhol para os presentes quais são os empregos disponíveis. As vagas são distribuídas por sorteio aos interessados de acordo com suas habilidades. Dependendo do dia, há trabalhos na área de construção, de limpeza, de jardinagem e de outros tipos. São empregos temporários em que os imigrantes, na maioria mexicanos (e nenhum brasileiro), recebem por hora trabalhada. O salário aqui varia de US$ 12/hora, no caso dos serviços mais simples, como limpeza, a até US$ 20/hora, para carpinteiros e azulejistas. Manuel, um dos jornaleros (como se chamam em espanhol esses trabalhadores informais) me explica porque decidiu há cinco anos vir para o Estado de Washington, depois de 22 anos vivendo nos Estados Unidos e tentando a vida em outros Estados mais "manjados", como a Califórnia. "Aqui pagam melhor, respeitam você mais. É o melhor lugar dos Estados Unidos para se viver." Segundo Manuel, no Texas, o pagamento mínimo chega a ser de US$ 5/hora. Outro mexicano, Carlos, explica que encontrou em Seattle vantagens que não achou em outras cidades, como, por exemplo, serviço odontológico e médico eficiente e que atende os imigrantes sem problemas. Também ainda dá para tirar carteira de motorista (o que ficou impossível em alguns outros Estados). E há uma cereja nesse sundae: muita oferta de empregos, especialmente no verão. Manuel concorda. "Tem muita gente do sul vindo para cá. Lá as medidas antiimigração estão tornando as coisas mais difíceis." Pedro Jimenez é o organizador da Casa Latina que, nesta manhã, berrou aos presentes as ofertas de emprego. Diz que deixou o México para tentar "o sonho americano" e está em Seattle há nove anos. Começou fazendo trabalhos eventuais e hoje levanta às 4h30 para chegar à sede da Casa antes das 6h e organizar a distribuição de empregos. Ele diz que os jornaleros proporcionam aos americanos mais ricos mão-de-obra barata e deveriam ser reconhecidos e apoiados. "O que peço ao futuro presidente é mais dignidade para os imigrantes nos Estados Unidos, para que possam continuar lutando por melhores condições de vida para suas famílias", disse. O problema, para todos jornaleros de Seattle (e para qualquer pessoa normal, acredito) é esse tempo. A hora passa e a chuva fina começa. E não pára, e se mistura com neve. E o frio dói nos ossos. O pessoal da Casa Latina organiza aulas de espanhol para os interessados e eu e meus colegas da BBC nos enfiamos na sala. Tiramos fotos da aula, gravamos imagens de vídeo e silenciosamente damos graças a Deus que estamos no quentinho. Mas não dá para adiar. Nos despedimos dos trabalhadores, desejando-lhes boa sorte. Depois de passarmos pela Space Needle, uma torre panorâmica de 184 m de altura que é o símbolo de Seattle, voltamos para o centro. Fui comprar mais roupas de frio e voltei ao "mundo real" do centro da cidade. Entrei num restaurante para almoçar, abri o olho - lá estão eles, um garçom aqui, outro acolá, latinos como eu. A tendência de crescimento dos hispânicos em Seattle já foi registrada no censo americano: em 2000, eles eram 5,3% da população da cidade. Em 2006, passaram a ser quase 33 mil, ou 5,9% dos moradores. Ainda não são tão visíveis quanto os chineses e seus descendentes. Mas isso parece ser só uma questão de tempo. A não ser que alguém lá em Washington (a capital, não o Estado) descubra que eles estão vindo para cá... e faça algo a respeito. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
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