Encontro com a emancipadora

Geração da Praça Tahrir redescobre uma legenda da vanguarda feminina no Egito cuja militância nem pressões nem prisão detiveram

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Por Lúcia Guimarães

A voz que atende ao telefone num quarto de hotel em Times Square combina com a biografia da hóspede. "Imagine, a rede ABC americana me censurou!", declara a combativa médica psiquiatra, romancista, dramaturga e ex-exilada política Nawal el-SaadawiAos 80 anos, a doutora El-Saadawi, figura lendária do movimento de emancipação feminina no Egito, foi redescoberta pela geração que organizou os protestos na Praça Tahrir. Seu apartamento, na Rua Maahad Nasser, no Cairo, é frequentado por membros do Facebook tal qual um café de internet. Os jovens egípcios bebem as palavras de ordem dessa mulher que o falecido ex-presidente Anwar Sadat pôs na prisão em 1981, numa onda de repressão a intelectuais que se opunham aos acordos de paz com Israel. Mas El-Saadawi já tinha chamado a atenção do governo e perdido o emprego no Ministério da Saúde egípcio, com a publicação, na década de 70, de Mulheres e Sexo, um exame das consequências da mutilação genital feminina sofrida pela própria autora, aos 6 anos, que foi retirado de circulação no Egito e proibido durante 20 anos. A repressão sofrida por El-Saadawi incluiu, alem da prisão, e de obras banidas, um processo por apostasia em 2002, movido por fundamentalistas muçulmanos para forçar sua separação do marido. Ela ganhou na Justiça e continua casada com o escritor Sherif Hetata, com quem tem dois filhos.Nawal el-Saadawi concordou em falar, entre inúmeros compromissos, numa rápida passagem pelos Estados Unidos para palestras na Universidade de Nova York e na Montclair University, em New Jersey.Na semana passada, o Congresso americano deu início a audiências sobre o radicalismo muçulmano que foram comparadas ao macartismo da década de 50. Os convites que a doutora El-Saadawi continua a receber para falar no país onde o discurso dissidente se tornou um campo minado são um testemunho de seu papel histórico. Para se ter uma ideia, a censura da qual ela se queixa no começo da conversa foi durante o programa político de domingo que tem como anfitriã a famosa correspondente Christiane Amanpour. O vídeo está disponível online e o programa foi editado. O desconforto evidente de Amanpour diante da entrevistada faz sentido quando El-Saadawi explica as palavras censuradas. "Eu disse que George W. Bush e Osama bin Laden são gêmeos", ela lembra. Não é o tipo de declaração que vá atrair simpatia na cidade cenário do massacre das Torres Gêmeas, mas El-Saadawi é mais do que a soma dos slogans que usa com fartura."Não separo mente, corpo ou espírito", diz a médica, que considera suas memórias, romances e peças facetas de uma mesma inquietação. No Brasil, seu A Face Oculta de Eva (Global Editora) é um exemplo de eloquência da denúncia da condição feminina no mundo árabe. Ela explica que a palavra feminismo não é usada no Egito, e sim a expressão "libertação das mulheres". E se apresenta como feminista radical apenas porque, explica, não dissocia a emancipação feminina de reformas econômicas. "Não existe democracia sem igualdade entre homens e mulheres", diz , "e não há igualdade no contexto global de exploração econômica." Ela não se cansa de argumentar que a queda de Hosni Mubarak foi resultado de um movimento igualitário. "Homens, mulheres, intelectuais, donas de casa, meninas, todos foram para a praça." Pergunto se não tem medo do que vem depois, num país onde a Constituição e a hierarquia familiar estão longe de inspirar estabilidade para as mulheres que desafiaram o status quo. "Claro que o retrocesso é possível, sempre foi assim. Depois de um movimento, minorias podem voltar a ser violentamente reprimidas." Mas, se depender de El-Saadawi, a elite que se reagrupou no poder no Egito vai continuar em cheque. Na marcha convocada para o Dia Internacional da Mulher uma das críticas foi a exclusão de mulheres da comissão encarregada de estudar reformas constitucionais.Desde a queda de Mubarak, como anfitriã de reuniões políticas no apartamento onde mora, El-Saadawi destaca dois sinais para justificar uma dose de otimismo. Entre os jovens da chamada geração Facebook , frequentemente os homens são mais numerosos que as mulheres nas reuniões e, segundo ela, intensamente interessados na emancipação feminina.E a temida Irmandade Muçulmana, usada por Mubarak durante décadas para argumentar com o Ocidente que sua ditadura secular era melhor do que uma ditadura religiosa? "É uma geração completamente diferente" afirma. "Não tenho mais medo da Irmandade Muçulmana. Eles acreditam na importância do governo secular."Para uma ativista tão encantada com a militância de uma geração abastecida pela tecnologia de corporações americanas como o Twitter, Facebook e YouTube, Nawal el-Saadawi se mostra profundamente nacionalista e hostil ao que continua a agrupar sob a expressão "neocolonialismo ocidental". Suspeita que a recente visita do secretário da Defesa americano, Robert Gates, pode ter reacendido o ódio religioso manifestado nos incêndios de igrejas cristãs coptas. É uma alegação que desafia a credulidade.Quando pergunto, enfim, se ela aceitaria ter alguma função oficial, a ex-candidata a presidente, que tentou sem sucesso concorrer contra Hosni Mubarak no ano de 2005, é enfática: "Detesto burocracia. Quero ficar em paz para escrever meus livros".

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