PUBLICIDADE

Eu, jurado

Colunista fala sobre sua experiência como jurado em Nova York.

PUBLICIDADE

Por Lucas Mendes

A convocação pelo correio vem num envelope rosa choque com a palavra "JUROR" em manchetaço. Ah! Que bela oportunidade de cumprir meu dever cívico e fortalecer a democracia americana! Naaaaaa!!! A primeira reação - minha e de quase todo mundo - é "Putz! Me pegaram." Me senti miserável como um condenado. Uma rápida pesquisa revela que não há escapatória: todas as mentiras são neutralizadas. Quem é doente ou indispensável para um doente ou arrimo de família vai para casa, mas é preciso trazer tantas provas que a maioria desiste e serve. Ignorar a convocação dá prisão e US$ 1.500 de multa, no mínimo. Há pouco tempo um jurado foi rejeitado porque disse que tinha comido carne humana. Gostaria de conhecer quem tem peito e humor para uma mentira tão cabeluda. Consultei um advogado sobre a possibilidade de usar a gravação do meu programa, Manhattan Connection, que envolve umas 20 pessoas no Rio e em Nova York. "Eu sou o âncora", disse ao advogado. "Sua desculpa vai afundar." Se o prefeito Bloomberg pode parar de governar a cidade e ser jurado, quem sou eu que não posso me ausentar do meu programinha na TV a cabo brasileira? Nem tentei. O GNT mudou o dia de gravação para sábado, estragou o fim de semana de toda a equipe, e eu me consolei com outros jurados que pareciam indispensáveis, inclusive Madonna, que chegou no júri dela com guarda-costas, secretária e BlackBerry. Foi dispensada porque provocava muita distração. Não é o meu caso. No dia da minha convocação eu já estava não só conformado como ansioso para viver a experiência. No mínimo daria uma coluna para a BBC. A exemplo do prefeito, levei farto material de leitura, mas não usei gravata. Há vários pontos de convocação de jurados na cidade para júris civis e criminais. O meu era civil na Supremo Estadual. 99% dos casos são questões de dinheiro. A sala é grande, limpa e quase confortável. Naquele dia, dos cem convocados, as mulheres de meia e de mais idade eram maioria, e as outras minorias, latinos, negros e orientais, dominavam, um reflexo da população de Nova York. Ninguém usava gravata. Vários jovens dormiam nas cadeiras ou debruçados nas mesas. Uma cantina com televisão, computadores e terminais para laptops completavam o ambiente. O burocrata encarregado de nos instruir e pôr a casa em ordem nos deu susto. Às oito e meia da manhã, diante de uma platéia amarga que gostaria de esganá-lo, em poucos minutos ele tinha absoluto controle da situação. Como um homem com tanto senso de humor, inteligente e objetivo é um burocrata? Nós latinos não estamos acostumados a lidar com esta gente. Sabemos que existem, mas em geral ficam longe do povo. Depois das explicações do processo, o anfitrião exibe dois vídeos sobre como funciona o sistema. Produzidos pela CBS e apresentados pelos repórteres do programa 60 Minutos, pareciam com o programa de domingo à noite. Meia hora de entretenimento instrutivo. Nos primeiros júris populares, na Inglaterra, os suspeitos eram amarrados e jogados no rio. Quem flutuava era culpado. Os inocentes afundavam e eram socorridos às pressas. Nem sempre a tempo. Nós éramos umas cem pessoas na sala. O anfitrião explicou que ia sortear 30 nomes na roleta à manivela, como uma loteria. Estes 30 iriam para o primeiro julgamento, que começaria naquela manhã. Os advogados das partes entrevistariam os sorteados, e os eliminados voltariam para a sala. Meu nome não saiu no primeiro sorteio, e ao meio-dia fomos liberados para o almoço. O Estado de Nova York nos mandaria uma diária de US$ 40 pelo nosso serviço, e nossas empresas não poderiam descontar nosso dia não trabalhado. Naquele quarteirão do tribunal ficam alguns dos melhores restaurantes de Nova York. Uma sopa e um sanduíche do Bouley melhoraram ainda mais minha impressão do sistema jurídico do Estado. Juízes e advogados comem bem, e US$ 40 para almoço é uma diária generosa. Sobra para o metrô e um drink. Às duas da tarde estavamos de volta na sala, e o anfitirão disse que tinha uma notícia importante. As partes que entrariam em julgamento naquela tarde tinham acabado de chegar a um acordo. Como não havia outro julgamento naquele momento, estavamos todos dispensados, porque no dia seguinte chegariam outros cem candidatos a júri e não caberiamos na sala. Ele sugeriu que jogassemos na loteria, porque essa dispensa era uma sorte rara. Em geral, aquela corte tem pelos menos três julgamentos em curso. Fiquei decepcionado. Estava preparado para passar de sete a dez dias imerso naquele mundo tão diferente do meu, decidindo a vida dos outros de manhã e à tarde, com um almoço no Bouley, lendo ou vendo o bando passar. Vidão! Podia render mais do que uma coluna. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.