Brinca-se em Bauru, município a 350 quilômetros de São Paulo, que todas as famílias ali descendem da ferrovia. Pai, mãe, tio, filho, sobrinho; toda casa que se preze na cidade tem alguém que já trabalhou ou ainda trabalha nas linhas que fazem de Bauru o maior entroncamento férreo do País. Até por isso, pelo orgulho que todos têm dessa história, algo na alma do bauruense está enferrujando. E sendo pilhado dia e noite, sem dó, sem controle, sem fiscalização.Em um terreno na periferia de Bauru, dezenas de vagões antigos da Estrada de Ferro Sorocabana agonizam no meio do mato alto, sendo alvo diário de pichadores, ladrões de peças e usuários de drogas que dormem ali. Entre os vagões que jazem ali para virar sucata estão locomotivas elétricas das décadas de 1940 e 1950, mais conhecidas como "lobas" por causa dos eixos que lembram um focinho de animal. A importância histórica, que remete ao início do processo de eletrificação das ferrovias, parece que vale menos, bem menos, do que o interesse dos ladrões pelos cabos, bancos, pedaços de ferro, alumínio, cobre, parafusos antigos e placas de aço.O descaso é resultado de um imbróglio que se arrasta há mais de uma década, desde o desmantelamento das linhas ferroviárias. Questionada pelo Ministério Público Federal (MPF), a América Latina Logística (ALL), empresa que administra desde 2006 as linhas de trem em São Paulo, teve de fazer no ano passado um plano de retirada de ativos imobilizados na malha paulista. Exatos 2.300 vagões, locomotivas e carros de passageiros abandonados em pátios ou à margem da ferrovia nas malhas paulistas foram cadastrados e analisados. Segundo a Assessoria de Imprensa da ALL, a empresa escolheu 1.365 unidades para restaurar e reaproveitar, enquanto 635 unidades continuaram nas mãos do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes para serem leiloadas e virarem sucata.Atualmente, ex-ferroviários e fãs da estrada de ferro de Bauru lutam contra o tempo para preservar essas locomotivas abandonadas na cidade. A intenção é levantar fundos e comprar os vagões para colocá-los num museu ferroviário que está sendo planejado na cidade. "Bauru foi criada por causa da ferrovia, e justamente por isso queremos resgatar materiais que têm valor histórico para nós", diz Ricardo Bagnato, vice-presidente da Associação de Preservação Ferroviária e Ferromodelismo de Bauru. "Hoje, os vagões estão sendo pilhados por vários drogados, que trocam peças por uma pedrinha de crack."Desde que as ferrovias começaram a ser implantadas, em 1860, o que nunca faltou foram episódios de fusão, aquisição, divisão e encampação de empresas. O resultado é um espólio sem valor. As cenas no cemitério de locomotivas em Bauru ilustram a falta de uma política pública integrada para tratar de um capítulo essencial na história paulista. Não só os vagões foram abandonados depois do colapso do transporte ferroviário de passageiros, como também estações, residências, trilhos. Outrora pontos de partida para a formação de bairros e cidades, as linhas hoje podem ser consideradas imensas cicatrizes, grandes vazios habitacionais, onde a história foi esquecida e o patrimônio virou ruína. Segundo levantamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, quase todos os 645 municípios paulistas são dotados de uma estação, mas na imensa maioria das vezes elas estão fechadas ou em ruínas.