Em 1968, quando cheguei a Londres trazido pela BBC, a Inglaterra parecia infensa ao torvelhinho da política internacional, marcado pela primavera de Praga e todos os desdobramentos que açulavam a guerra fria e comprometiam a autoridade soviética. Muito ao contrário das aflições no Leste Europeu, a minissaia criada por Mary Quant, a pílula anticoncepcional e seu reconhecido corolário, a sociedade permissiva, pareciam fazer a cabeça da juventude do mundo inteiro. Os Beatles eram os personagens mais importantes dessa reverência. Londres havia mudado a imagem de cidade cinza e fria, passando a ser o epicentro do abalo comportamental que tocaria na escala máxima, se houvesse uma forma de medi-lo. Eu me lembro muito bem. Fui o último a chegar, dos três que a BBC contratou no Brasil, naquele ano: dois vindos do Rio, o Ivan Lessa e o Antônio Carré, e eu, de Belo Horizonte. Cheguei no sábado de um setembro chuvoso, assinalando o outono muito frio, que começou uma semana depois. Era o meu segundo desembarque em Londres. Viemos, os três, espontaneamente, deixando para trás um Brasil afogado em doridos ais do regime militar, que ingenuamente achava ser capaz de ficar para sempre no poder. Não ficou o regime brasileiro, nem o soviético, ou qualquer outro regime de exceção. Parecia que ninguém lia ou queria ler livros de história. A BBC tinha uma hospedaria, um hostel, bem no centro da cidade, na Cavendish Street, onde vivi seis meses, enquanto procurava apartamento para morar. Retardei a procura porque o hostel era muito divertido para um homem ainda solteiro, deslumbrado com a maioria feminina que o ocupava. Além disso, da Cavendish Street a Bush House, a sede do World Service da BBC, a caminhada de não mais de vinte minutos era muito salutar. Àquela altura, quando as transmissões para o Brasil tinham meros 30 anos, não existia melhor fonte para quem quisesse saber dos acontecimentos no país governado por generais-ditadores. A censura feroz, como convém a todo regime ditatorial, não nos atingia. Os nossos índices de audiência podiam ser comparados aos registrados na Segunda Guerra Mundial, se já houvesse, em 1938, ibopes para apurá-los. Os cuidados na cobertura dos fatos asseguravam notícias corretas e isentas, mas, ainda assim, as reclamações oficiais se repetiam. Foi desta forma que conheci Bush House, em 1968. Badaladas do Big Ben Éramos apenas onze na equipe encarregada de colocar no ar, todas as noites, duas horas e quinze minutos de programação. Íamos ao ar às 19 horas, no horário de Brasília. Os novatos, como eu, já ao final de uma semana, sabiam de cór a abertura imutável, que se seguia às badaladas do Big Ben: estação de Londres da BBC. Estamos iniciando mais uma transmissão para o Brasil nas faixas de 19, 25, 31 e 49 metros. Boa noite ouvintes. Com vocês Jader, ou Ivan, ou Carré - quem quer que estivesse escalado. Apresentávamos três noticiários, cada um de dez minutos. E dois comentários de não mais de quatro minutos cada um. Ao vivo as notícias e os comentários; os programas eram gravados durante o dia. A redação era certamente muito diferente da que existia em 1938, quando a BBC começou a transmitir para o Brasil, com o fito de neutralizar a propaganda nazista. Naquela época, tudo ia ao ar na hora, sem a preocupação de leituras escorreitas que as gravações asseguram. A Alemanha de Hitler foi o primeiro país a vislumbrar a importância da onda curta e a BBC a primeira a entrar no que se chamou, então, de guerra da propaganda. Mas nós nunca fomos combatentes desta guerra. Agíamos sob a orientação coerente das notícias baseadas em fontes seguras (a mais importante, o próprio correspondente da BBC) e bem verificadas. A onda curta morreu sem necrológios, sem lamentos, sufocada pela internet. Saudosistas continuam achando que foi uma morte prematura, desnecessária. Talvez eles estejam certos. (*) Jáder de Oliveira Trabalhou na BBC Brasil de 1968 a 1999 BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.
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