Talvez tenha sido no Natal, talvez no Ano Novo, mas foi num destes dias de festas que o zelador de um prédio em Manhattan chamado Harold George ganhou um ingresso para uma peça como pagamento pela instalação de uma veneziana na janela de uma atriz negra do American Negro Theatre. Foi sua primeira vez num teatro e teve uma epifania. Na semana seguinte, entrou num curso para atores na New School. Na turma dele estavam, entre outros, Marlon Brando, Walther Matthau, Rod Steiger, Tony Curtis e Bea Arthur. Como ator, já com o nome artístico Harry Belafonte, nunca fez o sucesso dos colegas, mas numa das peças montadas pelos alunos do curso ele cantou e o saxofonista Lester Young estava na plateia. Convidado, Belafonte disse que não era cantor, mas aceitou. US$ 70 por semana era dinheiro e estreiou numa das principais igrejas do jazz na década de 50, o Village Vanguard, com uma turma igualmente jovem e genial: o saxofonista Charlie "Bird" Parker, o baterista Max Roach, Tommy Potter no baixo e o pianista de Lester Young, Al Haig. Com este quarteto era impossível dar errado, mas Belafonte, que aprendeu a cantar na Jamaica onde todas as crianças cantavam e cantam, não era um jazzista. Cantava os clássicos americanos, Stardust, Pennies From Heaven, Skylark, até conhecer Pete Seeger e descobrir o folclore. Antes de chegar na explosão de Belafonte, que foi campeão até em canções de Natal, vamos voltar à infância miserável dele no Harlem, filho de imigrantes jamaicanos, mãe diarista, pai alcoólatra e violento. Na frente dos filhos, batia na mulher até a mão sangrar. Ela encontrou refúgio na igreja católica, mas quando a barra pesou demais, levou os filhos de volta para a Jamaica e os entregou aos cuidados da mãe, uma branca de olhos azuis. O filho, magoado, se esqueceu da mãe, adorava a avó e atribui a ela a facilidade de transitar entre brancos e negros sem constrangimento, mas foi profundamente marcado pelo racismo. Aos 17 anos, de volta ao Harlem, saiu da escola se alistou na Marinha e achou que o fim da guerra marcaria o fim da segregação. Seu primeiro sucesso foi em 53 com Matilda, já no pós-quarteto genial. Para criar um repertório folclórico passou uma temporada na livraria do Congresso, em Washington, e gravou seu primeiro álbum. Mas o grande sucesso viria em 56 com Calypso, o primeiro long-play que vendeu mais de um milhão de álbuns na história. Ficou 31 semanas em primeiro lugar nas paradas, até ser derrubado por Elvis Presley. Day-O, sobre um barco de bananas na Jamaica, virou uma marca registrada e um apelido. Belafonte anda na rua e até hoje é saudado com "Day-O". Uma vez entrou num tribunal e o juiz cantou "Dddday-o"! Na sua biografia, My Song, Belafonte conta que ele era "negro, mas não muito", por isto foi mais fácil ser aceito pelos brancos, mas conheceu um dos limites da integração quando fez o filme The World, The Flesh and the Devil com a louríssima Inger Stevens. A química entre os dois era quente demais para os executivos, que disseram a ele: "Beijar não pode". Reescreveram metade do roteiro e cortaram as cenas afetuosas. Belafonte concluiu que era "impossível mudar Hollywood: era preciso mudar o país". Rico com o dinheiro dos discos, investiu no movimento de integração racial, tornou-se um dos confidentes de Martin Luther King, marchou e organizou várias passeatas, entre elas a gigantesca em Washington, aquela do I Have a Dream do líder pacifista. A guinada de Belafonte foi tão para a esquerda que o FBI contratou o assistente pessoal dele como informante, mas os caçadores de bruxas nunca conseguiram colocá-lo na lista negra. Frequentou a Casa Branca de John Kennedy, a de Fidel Castro, gosta de Hugo Chávez e ajudou outros liberais americanos de esquerda, mas tem um pé atrás com Barack Obama. Acha o presidente um intelectual frio e brilhante, mas sem empatia genuína pelos negros e pobres em geral: "É só da boca pra fora e para fins políticos". O saldo da autobiografia é positivo, com histórias saborosas sobre Marlon Brando, Sinatra na mesa de hoje e um Maracanã de celebridades, mas a ênfase é nos direitos civis. Os podres e os dramas da vida pessoal estão lá: dois divórcios, o vício no jogo, análise para afastar os demônios da infância, a crise de identidade. "Afinal eu era um afro-americano, um jamaicano, um mulato?" Aos 84 anos, ele percorre o país na promoção do livro e parece incansável, mas em outubro, na Flórida, quando a câmera abriu nele estava num sono profundo. Foi sucesso imediato no YouTube. "Não estava dormindo. Só meditando", explicou. A voz ja foi embora, mas a língua continua afiada. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.