NOVA YORKNo dia 11 de setembro de 2001, o romancista Colum McCann recebeu em casa a visita do sogro, coberto de cinzas - ele havia acabado de escapar do atentado às torres gêmeas. Em novembro passado, o autor irlandês ganhou o maior prêmio literário americano, o National Book Award, com Let The Great World Spin (Deixe o Grande Mundo Girar), que será lançado em maio no Brasil pela editora Record. O livro foi recebido pela crítica como um primoroso exemplo da literatura inspirada pelo ataque ao World Trade Center. Todos nós que vivemos o 11 de Setembro em Nova York, com o seu sol de chamas e o nevoeiro da morte, temos memórias idiossincráticas daquele dia. A bordo de um táxi, testemunhei a gigantesca nuvem de fumaça erguida com a queda das torres do WTC. Mas, tanto quanto o momento do horror, continuo revivendo detalhes mundanos em câmera lenta. Uma caminhada noturna pela semideserta Times Square e a surpresa de encontrar uma churrascaria aberta. A refeição farta, um prazer culpado diante da tragédia.A maior parte da trama de Deixe o Grande Mundo Girar se passa num dia de agosto de 1974, quando o equilibrista francês Philippe Petit atravessou num cabo de aço a distância que separava as torres gêmeas, a centenas de metros de altura. Petit foi preso e sua primeira audiência diante do juiz levanta a cortina para a trama das vidas múltiplas no chão: mãe e filha, ambas prostitutas do Bronx; uma mulher branca na abastada Park Avenue; um monge irlandês radicalizado à esquerda. Como uma cobaia de um laboratório de psicologia behaviorista, foi só ouvir os primeiros "erres" e "eles" do musical sotaque do ficcionista irlandês que estava à minha frente para eu me acomodar à espera da recompensa: uma boa história.O premiado McCann tinha uma noite de autógrafos marcada para uma minúscula livraria independente de Chelsea e aproveitei a chance de passar ao largo de agentes literários poderosos. Atraí a boa vontade de uma secretária do Hunter College, onde McCann é professor de Creative Writing. Reservei a mesa no fundo de um restaurante austríaco perto da tal livraria e, mais uma vez, contemplei a bonança de ser remunerada para fazer o que faço. Um dos mais celebrados autores de sua geração, o dublinense - como é difícil, sabemos, ser um escritor de Dublin depois de James Joyce - chegou armado de casos para contar. E animadíssimo com o convite para participar da próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em agosto.Como testemunha pessoal do 11 de Setembro, McCann passou anos processando sua memória. E encontrou na façanha de Philippe Petit, um momento mágico de criação, o contraponto ideal para o ícone de destruição que foi o atentado de 2001 - em outra palavras, o mote para o seu romance. Nesta entrevista exclusiva ao Estado, ele explica que queria afastar-se dos lamentos, atravessar para o outro lado do horror. McCann não é estranho às adversidades da vida americana. Ex-repórter, no começo dos anos 80 ele cruzou os Estados Unidos, numa viagem de bicicleta de 18 mil quilômetros; na mesma época, foi mentor de jovens delinquentes no Texas; escreveu, ainda, um livro sobre os túneis subterrâneos de Nova York (O Outro Lado da Luz, 2003). Depois de décadas apurando o ouvido para as narrativas dos rejeitados da sociedade, ele se diz hoje interessado nas encruzilhadas que reúnem personagens mais diversos. Acompanhe a seguir a boa prosa do irlandês - nuvem e raiz, céu e chão, sonho e realidade. Um grande mundo que gira.O ponto de partida do seu romance Let The Great World Spin é a travessia de uma a outra das torres gêmeas do World Trade Center, num cabo de aço, realizada em 1974 pelo equilibrista francês Philippe Petit. Por que você escolheu essa imagem?No começo, acho que foi uma reação emocional, não sabia bem o que estava fazendo. Eu me senti atraído pela imagem. Frequentemente você não sabe bem o que está fazendo. E.L. Doctorow diz que escrever é como dirigir à noite no nevoeiro. Você acende o farol e a luz cobre a névoa só até uma certa distância, você não sabe aonde vai, mas sabe que vai chegar a algum lugar, eventualmente. Então, depois de me sentir atraído pela imagem, ficou claro para mim que tínhamos este ato de criação em oposição direta ao ato de destruição. O momento de beleza e o momento de gênio diabólico. Eu não queria lamentar, me queixar, mas ter o 11 de Setembro presente. Enquanto escrevia, pensei: "Eu quero muito me deslocar para um momento de graça." Foi quando percebi que tinha um romance ali. Não precisava tratar do ato do Petit, não me importava o equilibrista. O que me comovia eram as vidas no chão. Como chegou a essa conclusão?Eu dou aula no Hunter College e levei o Don DeLillo para falar com os alunos. Ele escreveu Underworld, um dos melhores romances dos últimos 25 anos. Os estudantes perguntavam sobre o processo de escrever. Ele desconversava e, de repente, deu uma ótima explicação: "Parece que eu me beneficio de uma revelação ocasional." E eu exclamei: "Yesss!" Você trabalha no escuro e, às vezes - às vezes - algo lhe acontece. E você vai atrás. Mas os leitores têm de completar o processo. Um livro não vale nada se o autor quer induzir o pensamento do leitor.