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O magnífico outono de Bergman em sua ilha

Documentário esmiúça a trajetória final do cineasta sueco, entrevistado em Farö

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Difícil imaginar melhor palco que uma ilha invernal para o último ato de um artista da solidão. Foi o que aconteceu com Ingmar Bergman (1918-2007), que se apaixonou pelo mistério da Ilha de Farö (uma preciosidade mergulhada no Báltico, na costa da Suécia), lá comprou casa nos anos 1960 e nela se recolheu definitivamente em 2004 para morrer três anos depois. É em Farö que Marie Nyreröd o encontra para a gravação deste documentário estupendo que é A Ilha de Bergman, exibido, em versão mais extensa, na Mostra de Cinema em São Paulo. Chega agora em DVD, em edição enxuta, de 83 minutos (Versátil, R$ 38,90). Uma imersão compacta no mundo, obra e modo de ser deste que foi um dos mais importantes criadores do século 20. Criador, e não apenas cineasta, porque a obra de Bergman extrapola o âmbito do cinema. Não apenas por causa da sua atuação permanente no teatro (que às vezes considerava até mais importante do que a no cinema), mas pela universalidade e alcance do seu pensamento. Bergman pensava (e sentia) através do cinema, o que é bem diferente de apenas "fazer" cinema. Por isso, talvez, seja tão enriquecedor, para a compreensão da obra, o depoimento sincero que Bergman presta a Marie Nyreröd. Não que a vida se "reflita" na obra de maneira imediata. Mas, com as devidas mediações, é inegável que uma entre em ressonância com a outra. Por exemplo, o relacionamento algo ambíguo de Bergman com a mãe e também com o pai, entram em sintonia com o que vemos em vários dos seus filmes, em diversas etapas de sua carreira, como Morangos Silvestres e, bem mais tarde, Fanny e Alexander. É espantoso ver aquele velho homem, de 88 anos, confessar um ato do passado que lhe parece torpe. Era casado, pai de quatro filhos, quando se apaixona por outra mulher. Planeja passar três meses com ela em Paris e decide avisar a esposa. Chega em casa inesperadamente e a esposa o recebe, feliz e surpresa com a volta antes do tempo previsto. Mas ele retornara apenas para comunicar que iria abandoná-la e viver com a outra. Quem reconhece nessa passagem uma sequência central de Cenas de Um Casamento, acerta em cheio. Sente culpa por haver abandonado mulheres e ter sido pai negligente de oito filhos? Em termos. Esse Bergman idoso, que se autoanalisa de maneira impiedosa, diz que sentia remorsos até descobrir de que material era feito esse sentimento. "Sentimos culpa para nos infligirmos um sofrimento tolerável, muito pequeno em relação àquele que causamos nos outros." E, a partir desse insight, mesmo o sofrimento compensatório da culpa desaparece.Temos então um homem apaziguado em sua magnífica e solitária velhice? Em termos. No documentário vemos um Bergman saudável, espantosamente ágil para a idade. Dirige seu carro e, às vezes, em velocidade maior do que pediria a prudência. Faz tudo sozinho e procura manter uma rotina, pois se diz "muito desorganizado". Levanta de manhã, caminha na beira do mar, volta e escreve por três horas. Depois almoça e vê filmes em sua sala privê. Ouve música. Olha o mar e medita. Pensa e escreve. Dorme, sonha e assim prossegue seus dias. É evidente que se sente bem, e talvez envaidecido, de estar contando sua vida para uma interlocutora bem mais jovem. Esse Bergman sedutor aparece em várias passagens do documentário, feliz. Ele também ri ao lembrar de fatos engraçados. Reverencia as mulheres que conheceu, das quais se orgulha e com as quais muito aprendeu. Lembrando quem foram elas (Bibi Andersson, Liv Ullmann, Ingrid Thulin...) não há por que duvidar da sua palavra. Fala abertamente de dissabores como seus problemas com o fisco sueco, que o levaram a morar na Alemanha. Lembra-se do dia em que foi preso e confessa ter sentido medo. É um homem que se contempla no espelho, sem qualquer autopiedade ou atenuante.Bergman é como alguns dos seus personagens. Pode ser o dr. Isaac Borg (Victor Sjöström) de Morangos Silvestres. Pode ser o menino (Bertil Guve) de Fanny e Alexander. Pode ser David (Gunnar Björnstrand) o pai da atormentada Karin em Através de Um Espelho. Pode ser o marido infiel, Johan (Erland Josephson) de Cenas de Um Casamento ou o filho Erik (Börje Ahlstedt) diante do pai cruel de Saraband, Johan, interpretado mais uma vez por Josephson. A capacidade de autoexame de Bergman é impressionante. E talvez ele só tenha alcançado esse grau de acuidade, esse autoconhecimento impiedoso, porque foi capaz de projetar-se e estilhaçar-se em seus personagens. Como Montaigne em seus Ensaios, Ingmar foi o principal personagem de Bergman em seus filmes. E pode ser que essa lição de anatomia autoinfligida lhe tenha trazido relativa paz final. É o que dá a entender esse emocionante documentário.

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