"Biografia é malha da qual a vida real escapa." A frase, de Oscar Wilde, é pinçada por Oswaldo Mendes na abertura de seu livro Plínio Marcos - Bendito Maldito, alentada biografia do autor de Navalha na Carne e Dois Perdidos numa Noite Suja, morto no dia 19 de novembro de 1999. Se vivo, completaria hoje 74 anos. Quem reteve na memória a figura de barbas longas, macacão e chinelos que vendia seus livros na porta dos teatros - sempre prometendo morrer logo para valorizar a obra - dificilmente tem a dimensão da trajetória percorrida até esse ponto. Embora se tenha conhecimento, só uma visão de conjunto dá conta do avassalador efeito sobre sua vida artística e pessoal do tempo histórico que lhe foi dado viver. No seu caso a censura não foi mero obstáculo, mas interferência vital. E se atualmente seu talento está devidamente reconhecido, uma trama de equívocos ainda recobre a figura humana. Pois corajosamente Oswaldo Mendes - amigo pessoal e, como ele, também ator, dramaturgo e jornalista - se propôs a puxar os fios dessa teia para revelar as várias facetas de Plínio Marcos, sem temor das menos favoráveis, mas também sem pudor de trazer à tona atos de rara grandeza, cuidadosamente escondidos pelo seu autor quando vivo. A tarefa não era fácil. Afinal, o grande parte do emaranhado de versões contraditórias sobre a vida de Plínio Marcos se deve a ele próprio, famoso pelo talento para recriar fatos em narrativas saborosas que espalhava aos quatro cantos. A autodefinição de "autor analfabeto", sendo ávido leitor, era apenas uma das contradições envolvendo sua imagem pública. Como dar conta? "Para driblar essa armadilha só mesmo caminhando entre a literatura, com o colorido ficcional que Plínio deu a episódios reais, e o máximo de rigor jornalístico possível", escreve Oswaldo no prólogo do livro. E cumpre o que promete. Refaz os passos de Plínio em ordem cronológica, desde a infância em Santos até sua morte em São Paulo, mas brinca com o tempo, dá pequenos saltos para atiçar a curiosidade, antes de voltar ao ponto de partida. Variações da frase "a história é saborosa, mas contraria os fatos" podem ser lidas em muitos momentos. Começa por desfazer a imagem, "vendida" pelo biografado, de moleque solto no mundo, criado entre marginais e bordéis. Ocorre que Plínio Marcos era canhoto e as "reguadas" corretivas para usar a mão direita - didatismo comum à época - lhe valeram uma gagueira e o horror à escola, ao contrário de seus irmãos, todos nascidos numa família de classe média-baixa, porém estruturada. Com incrível poder de síntese, Mendes traça um panorama histórico da cidade de Santos na década de 50, um centro cultural efervescente, na qual o jovem de inteligência aguda convive com artistas e intelectuais, e assim faz sua formação. Outro mito desfeito envolve a "descoberta" de Plínio Marcos por Pagu. "Claro que o prestígio dela foi muito importante ao reconhecer a qualidade de Barrela, mas ela não "descobriu" o Plínio", diz Oswaldo em entrevista ao Estado. Quantos conviveram com o dramaturgo ouviram a história de que ela teria escrito "esse analfabeto pensou que pudesse escrever outra peça" num jornal de Santos quando Plínio apresentou um segundo espetáculo. Oswaldo Mendes conseguiu recuperar o artigo e desfaz também esse equívoco. "Digamos que nas entrelinha ela dizia mais ou menos isso, mas era uma cobrança para ele estudar, pois apostava em seu talento e inteligência."Plínio Marcos: Bendito Maldito é obra de fôlego - cerca de 500 páginas. Editada pela Leya, será lançada no dia 28 de outubro, no Tuca. Plínio foi amigo de sambistas, boleiros, juristas, políticos e muitos artistas. Mendes colheu centenas de depoimentos e traça em linhas rápidas e precisas muitos outros perfis - como do diretor e crítico Alberto D"Aversa; do jurista Iberê Bandeira de Mello; do jogador Estevan Soares, atual técnico do Botafogo, a quem Plínio "salvou" de uma contusão mal curada; de Osmar Rodrigues Cruz, o idealizador do Teatro Popular do Sesi; do juiz Jarbas Nobre, o único voto favorável, entre dez, à liberação de Abajur Lilás. "A mim incomoda biografias que passam por nomes como se eu tivesse a obrigação de conhecê-los."Mendes já provara ser bom nesse gênero literário ao escrever, em 1997, o elogiado Ademar Guerra - O Teatro de Um Homem Só (Senac). Daí o convite do editor Quartim de Moraes, que iniciara o trabalho alguns anos antes e desistira, reforçado pelo filho de Plínio Marcos, o também dramaturgo Léo Lama, logo após a morte do pai. Mendes preferiu esperar. "Não queria escrever sob o impacto da perda. A emoção altera fatos, vicia depoimentos." O texto tem estrutura de peça - 20 cenas distribuídas em três atos. As frases de Plínio Marcos pinçadas no livro e reproduzidas no quadro ao lado não deixam dúvida: sua voz, tantas vezes calada, merece ser ouvida. Hoje, no Arena, um grupo de amigos promete reunir-se para cantar e contar casos em homenagem ao dramaturgo santista, a partir das 19 horas. O Arena fica na Rua Teodoro Baima, 94, centro.
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