Uma das mais importantes construções religiosas do Brasil, a Igreja do Convento de São Francisco sofreu um desabamento parcial do forro na tarde desta quarta-feira, 5, no Pelourinho, no centro de Salvador, deixando ao menos uma turista de São Paulo morta. O incidente ocorre no ano em que a capital baiana celebra os 40 anos do reconhecimento de seu centro histórico como patrimônio cultural mundial (popularmente chamado de “patrimônio da humanidade”), instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Datada do período entre os séculos 17 e 18, a igreja é considerada “uma das mais singulares e ricas expressões do barroco brasileiro”, segundo descrição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Também tem elementos rococó e neoclássicos.
A construção é recoberta externamente de esculturas e relevos, com folhagens e frutos de “talha dourada”, isto é, madeira recoberta de uma fina película feita à base de ouro. A ornamentação levou décadas para ser completa. Há, também, revestimentos com azulejo. Além da importância histórica e religiosa, o local é um dos principais pontos turísticos de Salvador.

Em anos recentes, outras construções históricas de Salvador tiveram problemas semelhantes. Um dos casos de maior repercussão foi o desabamento do antigo casarão do centenário restaurante Colon, conhecido pelo filé mal passado, elogiado até mesmo em livro de Jorge Amado. O imóvel era datado do século 19 e ficava no entorno da Praça Conde dos Arcos, na Cidade Baixa.
A Polícia Civil da Bahia divulgou que vai averiguar o caso da Igreja do Convento de São Francisco. Outras cinco pessoas ficaram feridas. Nas redes sociais, a Igreja repostou uma mensagem em que lamenta a morte da turista paulista.
Em relatório à Unesco, de 2023, o Iphan reconheceu problemas na preservação da cidade, o que é de responsabilidade dos proprietários dos imóveis. A instituição diz que “o complexo arquitetônico constituído por exemplares religiosos, civis e militares que remontam ao período colonial de Salvador como a primeira capital do Brasil” está “comprometido” (as demais opções eram “preservado”, “seriamente comprometido” e “perdido”). “A descaracterização dos edifícios do conjunto é lenta mas constante, e o abandono de exemplares significativos compromete a preservação”, explicou.
A igreja é de arenito lavrado, com duas torres simétricas, posteriormente recobertas por pedras brancas e azuis trazidas de Portugal. Há pesquisadores que apontam problemas na conservação há quase 100 anos, com intervenções que mitigaram alguns problemas, assim como outras que alteraram características.

No relatório à Unesco de 2023, o Iphan reconhece problemas de preservação, com parcial degradação, mas defende que não há impacto significativo. “As características construtivas da maioria dos edifícios face às condições climatéricas desfavoráveis, à falta de manutenção e ao abandono dos edifícios, promovem o crescimento de pragas que destroem estruturas construídas. Ervas daninhas, roedores, pragas de insetos, pragas e microrganismos de aves são presenças frequentes e impactam negativamente a propriedade protegida”, admite. Também fala em uma “falta de coordenação entre as instituições governamentais relevantes”.
Essa situação é ainda mais preocupante diante das mudanças climáticas, com a intensificação das chuvas e ondas de calor. “As altas temperaturas, a elevada umidade e a degradação dos edifícios aumentam consideravelmente o ataque de pragas e microrganismos aos imóveis e propriedades móveis que compõem o patrimônio mundial”, aponta. “A degradação pelo abandono, o vandalismo, a ocupação ilegal do espaço e as construções ilegais são ameaças atuais à preservação”, diz em outro trecho. Também reconhece problemas “frequentes” de destruição pontual deliberada do patrimônio.
Por outro lado, o instituto responde que “grandes investimentos” foram realizados nos últimos anos. Em outubro, por exemplo, o Iphan havia anunciado investimento de R$ 1,2 milhão para a elaboração de um projeto de restauro da igreja.
Salvador tem histórico de problemas
O centro histórico virou patrimônio mundial em 1985. À época, a Unesco apontou o “alto grau de autenticidade em termos de localização e configuração, formas e desenhos, materiais e substâncias”.

Já o Iphan define o conjunto urbanístico e arquitetônico como “um dos mais importantes exemplares do urbanismo ultramarino português”. “Com seus becos e ladeiras - acolhe um dos mais ricos conjuntos urbanos do Brasil, implantado em acrópole e distinguindo-se em dois planos as funções administrativas e residenciais (no alto) e o porto e o comércio (à beira-mar)”, descreve.
O balanço da Defesa Civil de Salvador mais recente aponta ao menos 2,7 mil casarões e outras construções históricas do centro e entorno em risco, dos quais cerca de 15% com riscos alto (288 construções) e muito alto (117) para desabamento ou incêndio. Em alguns casos, as edificações tiveram até de ser demolidas. O levantamento não informa quantos desses imóveis estão no perímetro reconhecido pela Unesco.
“O Centro Histórico de Salvador abriga imóveis antigos que, ao longo dos anos, passaram por um acelerado processo de degradação principalmente pela falta de manutenção de seus proprietários. Muitos destes imóveis estão totalmente abandonados, representando risco iminente para moradores e transeuntes”, diz relatório da Defesa Civil.
Por outro lado, Salvador já esteve duas vezes na lista bianual do World Monuments Watch, voltada a bens com “necessidade crítica de proteção”, realizada a partir da avaliação do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e de um painel independente de especialistas. A capital baiana esteve na lista de 2012.

À época, a organização afirmou que “o declínio econômico, o crime, a infraestrutura decadente e outros desafios deixaram o coração histórico da cidade vulnerável”. Igualmente em 2016, incluiu a Ladeira da Misericórdia na lista, pois “a rua encontra-se majoritariamente abandonada e com restrições de acesso”.
Embora não esteja na lista da Unesco de patrimônio mundial em risco, denúncias já foram feitas na organização. Em 2015, por exemplo, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU/BA), o Departamento da Bahia do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-BA) e o Sindicato de Arquitetos e Urbanistas do Estado da Bahia (SINARQ-BA) denunciaram à organização o que chamaram de “degradação” do centro histórico de Salvador após 31 imóveis serem demolidos depois de chuvas intensas e, ainda, do Governo do Estado declarar risco de deslizamento e desabamento de imóveis.
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