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"O corpo da mulher com deficiência não é entendido como capaz para reprodução", diz a psicóloga Vitória Bernardes, integrante do Conselho Nacional de Saúde (CNS) - representando a associação Amigos Múltiplos pela Esclerosa (AME) - e que faz parte do coletivo feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
Vitória ficou tetraplégica após sofrer uma lesão medular. "Eu não concordo que a nossa função na vida está restrita à maternidade, mas mesmo quando a gestação não representa risco à mulher com deficiência, é muito comum a indicação do aborto por médicos, porque o corpo da mulher com deficiência e suas limitações não são considerados aptos a cuidar de uma vida", diz.
Vitória afirma que as políticas públicas do Brasil para mulheres com deficiência costumam ter resposta centralizada nos recursos de acessibilidade, sem referência a todos os outros direitos.
"Nesse sentido, a questão do gênero está muito presente, porque uma mulher que precisa de apoio, de suporte, algo que todas precisam nesse momento, não é considerada apta e, por isso, o aborto e aceitável. Nunca é uma questão de garantia de direitos, mas da tutela do corpo dessa mulher por outra pessoa, que assume as decisões por ela. Nossa dignidade, garantida na Constituição, é frequentemente questionada", ressalta.
LAQUEADURAS - A psicóloga afirma que as discussões sobre a saúde ampla da mulher se arrastam desde a década de 1980, quando havia um debate sobre esterilização compulsória da mulher. Vitória lembra que, embora haja atualmente um entendimento de que o procedimento obrigatório é inadmissível, as mulheres com deficiência são frequentemente esterilizadas. "É uma questão de eugenia, uma discussão sobre os corpos, atravessada no debate sobre gênero", alerta a psicóloga.
"Hoje, se uma mulher preenche os critérios para fazer laqueadura, por exemplo, ela precisa da autorização do marido. A discussão não está ligada somente à decisão da mulher de não ter filhos e ao uso de métodos contraceptivos, como camisinha, DIU ou remédios, que não tem 100% de eficácia. Ainda é uma opressão ao direito de escolha. Há um cenário muito conservador, mesmo com a garantia em lei do aborto em casos de estupro, anencefalia ou risco à vida da mãe", diz.
Feminicídio e as mulheres com deficiência no Brasil
Para Vitória Bernardes, a discussão sobre saúde da mulher ainda é voltada à idade reprodutiva. "Mesmo quando há ações de prevenção a doenças, inclusive câncer, a visão é limitada ao corpo e ignora as fundamentações de gênero que afetam o adoecimento. É necessário muito avanço".
Ela destaca a relação direta entre capacitismo e machismo, que joga a mulher na invisibilidade e impede a construção de políticas públicas mais abrangentes, com participação efetiva de mulheres para determinar como essas políticas devem funcionar.
"O entendimento sobre a saúde da mulher ainda é centralizado na questão biológica, na sua função reprodutora, o que está nítido quando avaliamos as políticas públicas voltadas às mulheres", diz
"A garantia de direitos sexuais, por exemplo, tem pouco destaque. E a garantia de direitos reprodutivos também é negligenciada. Recentemente, o Ministério da Saúde publicou uma portaria para retirar o termo 'violência obstétrica' das discussões, como se isso fosse suficiente para acabar com as práticas que levam à violência obstétrica", comenta Vitória.
SEGURANÇA - "É importante frisar que a Lei Maria da Penha surgiu da experiência de uma mulher que sofreu violência e se tornou uma pessoa com deficiência por causa dessa violência. E mesmo após se tornar uma mulher com deficiência, foi atacada novamente, em uma tentativa de feminicídio dentro de casa", diz Vitória Bernardes.
Segundo ela, falta tratamento adequado e acesso a medicamentos, além da negligência com alimentação de qualidade. "O conhecimento sobre o que é uma deficiência precisa ser ampliado, para compreensão dessa 'marca' social, que está além da diversidade e destaca uma desigualdade", reflete.
Para a psicóloga, gênero é um fator de vulnerabilidade das mulheres com deficiência e, por isso, ainda são mais privadas de acesso à saúde, que é um direito e não um bem de consumo obtido somente por quem tem condições de pagar.
LEGISLAÇÃO - Há ameaças de retrocesso até por meio do legislativo como, por exemplo, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 29, de 2015, que criminaliza o aborto - inclusive quando está garantido por lei -, e o Projeto de Lei (PL) nº 478, de 2007 - chamado de Estatuto do Nascituro, que proíbe a pesquisa com células tronco embrionárias.
"Isso afeta até os tratamentos. Existem condições degenerativas raras que precisam de pesquisas com células tronco e isso é ameaçado por essas legislações", comenta a integrante do Conselho Nacional de Saúde.
"Sendo assim, além da sobrevivência da mulher com deficiência, existe a penalização da mulher, por ser mulher. Não há, por exemplo, políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. E ainda existe a criminalização do aborto legal, como ocorreu com a proposta do 'bolsa estupro', que pagaria um salário para mães violentadas que não abortarem, ou seja, não é uma escolha, mas uma imposição", completa a especialista.
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