Cobras, dente, parceiro amoroso: Saiba qual é o sonho mais comum em cada país

Ainda não há explicação única que justifique, biologicamente, os nossos delírios oníricos noturnos

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Por Roberta Jansen
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Uma das mais antigas deidades da mitologia grega é Morfeu, responsável pelos sonhos premonitórios. O deus funcionava como um intermediário entre os simples mortais e os demais moradores do Olimpo. Durante o sono, era ele quem passava as mensagens mais importantes, as orientações e as reprimendas das deidades para os homens. Por isso, a interpretação dos sonhos sempre foi levada muito a sério pelos gregos.

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E não só por eles. Tentar decifrar corretamente as mensagens trazidas pelos sonhos sempre foi uma preocupação da humanidade. Dos antigos egípcios aos neurocientistas contemporâneos, passando pelos psicanalistas e apostadores do jogo do bicho, é difícil ser indiferente às imagens oníricas que se infiltram no sono.

Recentemente, um levantamento feito pelo site britânico Mornings.co.uk revelou que os sonhos mais recorrentes em todo o mundo são aqueles que envolvem cobras, perda de dentes e antigos parceiros amorosos.

A pesquisa foi feita com base nas buscas sobre significado dos sonhos feitas no Google e mostra que alguns temas são recorrentes, independentemente dos países e das culturas diferentes. O sonho com cobras foi o mais pesquisado em um terço dos países analisados (52 em 147). O sonho se mostrou o mais recorrente no Brasil, bem como em partes da Ásia e da África. Segundo o site, sonhar com cobras pode simbolizar “medos ocultos e preocupações”, mas, ressalva, às vezes “uma cobra é apenas uma cobra”.

O segundo sonho mais recorrente, de acordo com o levantamento britânico, é o de perder os dentes. Pelo menos, foi o mais pesquisado em 17 países, entre eles o próprio Reino Unido e os Estados Unidos. Conforme o site, o sonho simbolizaria falta de autoconfiança e constrangimento diante de algumas situações sociais.

Pesadelos durante a pandemia

Os sonhos fazem parte da fisiologia normal do sono, segundo especialistas, e não é privilégio dos seres humanos. Outros animais também têm atividade onírica registrada durante o sono, caso de camundongos, cachorros e golfinhos, entre outros. Algumas funções metabólicas importantes, como a secreção do hormônio do crescimento e da melatonina, acontecem durante o sono.

No caso dos sonhos, no entanto, não há uma única explicação que justifique, do ponto de vista biológico, os nossos delírios oníricos noturnos existentes. E elas vêm mudando ao longo dos tempos. A neurociência vem se debruçando sobre a questão, sobretudo depois da pandemia, quando várias pessoas passaram a relatar pesadelos ligados à doença.

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Atualmente, a hipótese mais aceita é de que os sonhos funcionam como uma espécie de “treinamento” para eventos que podem acontecer na vida real. “Duas teorias muito coerentes se destacam: a da simulação de ameaças possíveis e a da simulação de relações sociais”, afirma a neurocientista e psiquiatra Natália Bezerra Motta, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Ou seja, os sonhos funcionariam como uma forma de treino para aprendermos a enfrentar determinadas realidades.”

De uma forma mais geral, o sonho seria um mecanismo para a consolidação de memórias. Foto: Damir Spanic/Unsplash.com

Neste contexto, os sonhos teriam sido importantes do ponto de vista evolutivo. Era uma forma de vivenciar as situações traumáticas, complicadas ou incomuns, sem toda a carga emocional da vida real, retendo aprendizados importantes.

Ainda assim, diz Natália, a imagética dos sonhos está sempre relacionada ao cotidiano. “Os sonhos têm a ver com a cultura em que estamos inseridos; são memórias baseadas no cotidiano que vivemos”, disse a pesquisadora.

Um estudo mais recente, da Universidade de Tufts, nos Estados Unidos, reforça esta ideia de uma nova teoria do sonho. O trabalho do neurocientista Erik Hoel, publicado na revista Cell Genomics em maio deste ano mostra que as narrativas alucinógenas que surgem em nossos sonhos, em geral, apresentam eventos incomuns.

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Nas palavras de Hoel, para além de um eventual treinamento para situações reais, é como se eles acrescentassem ruídos aleatórios a sistemas estáveis e previsíveis. Ou seja, eles deixam os nossos cérebros mais afiados e menos acomodados para lidar com as mais diferentes situações.

“Os sonhos oferecem saídas diferentes para dilemas cotidianos resolvidos sempre da mesma forma; isso pode aprimorar a nossa performance”, explica Hoel. “Pode parecer paradoxal, mas um sonho que você está voando, pode ajudar na corrida matinal.”

Conforme nós envelhecemos, explica Hoel, o volume de situações semelhantes que vivemos aumenta exponencialmente, fazendo com que o cérebro se habitue e adote posturas mais simplistas. Os sonhos bizarros serviriam para nos manter mais atentos, preparados para momentos diferentes.

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“A vida pode ser entediante às vezes”, escreveu o neurocientista em seu trabalho. “Os sonhos existem para impedir que você se ajuste demais ao modelo do mundo”, concluiu o pesquisador.

O sonho com cobras foi o mais citado em 1/3 dos países da pesquisa (52 de 147, incluindo o Brasil) Foto: Diego Azubel/EFE

Consolidação das memórias

De uma forma mais geral, o sonho seria um mecanismo para a consolidação de memórias. “Noventa por cento dos sonhos são um repasse do que aconteceu durante o dia de forma desorganizada. E comum grande conteúdo emocional”, explicou o chefe do Laboratório do Sono do Instituto do Coração (Incor), da Universidade de São Paulo (USP), Geraldo Lorenzi-Filho.

“Esse repasse tem várias funções, como organizar a memória. É como quando damos uma festa e, no dia seguinte, temos de limpar e organizar a casa. Esse repasse é uma forma de metabolizar as emoções, fixar algumas memórias, esquecer outras”, acrescenta ele.

O sono é formado por cinco ou seis ciclos de 90 minutos. Cada ciclo é dividido em duas fases, uma em que as ondas cerebrais são longas e lentas e outra em que a atividade cerebral é mais parecida com a do estado desperto. Os sonhos geralmente ocorrem na fase REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), mas não exclusivamente.

Como a visão é um dos nossos sentidos mais dominantes, explica o neurologista Fernando Morgadinho, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto do Sono, as imagens são um elemento crucial nos sonhos. No caso dos cachorros, por exemplo, seria o olfato. Outro elemento importante nos sonhos humanos são as sensações corpóreas de posição no espaço.

Estímulo à criatividade

Os sonhos podem estar também relacionados à criatividade, como reforçou a neurologista Rosana Cardoso Alves, neurologista especializada em Neurofisiologia Clínica e Medicina do Sono. “Os sonhos têm a ver com o que vimos e pensamos durante o dia, com as nossas vivências”, afirmou ela.

“Durante o sonho, nós juntamos memórias diferentes, de temas aparentemente desconexos, para reorganizar o cérebro. Essa mistura aleatória pode trazer boas ideias. (O ex-Beatle) Paul McCartney conta que já acordou com ideias para novas músicas. Pessoas consideradas mais criativas em geral dormem bem (e sonham).”

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Dificuldade em dormir

Os brasileiros dormem muito mal, e a pandemia pode ter contribuído para agravar ainda mais o problema. A conclusão é de um estudo, feito por cientistas da USP e da Unifesp e publicado na Sleep Epidemiology, segundo o qual 65,5% dos brasileiros relatam problemas relacionados ao sono. As mulheres são as mais afetadas: respondem por um terço dos casos, um dado recorrente em outros estudos nacionais e internacionais.

Sofrem também os aficionados em mídias sociais, que não conseguem deixar de lado os smartphones nem na hora de ir para a cama. O novo trabalho, que ouviu 2.635 pessoas em todas as regiões do País, revelou ainda algo pouco comum: um aumento dos problemas de sono entre homens jovens, o que costuma ser raro. Os cientistas dizem que mais estudos são necessários para entender esse dado, mas acreditam que as incertezas trazidas pela pandemia podem ser uma razão.

Correções

Diferentemente do publicado na versão original da reportagem, Rosana Cardoso Alves é neurologista especializada em Neurofisiologia Clínica e Medicina do Sono.

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