A maneira como políticos e cientistas lidam com a verdade é muito diferente. Mas esses dois grupos compartilham um comportamento que, aliás, é uma característica do ser humano: boas notícias são divulgadas rapidamente; más notícias são escondidas, divulgadas aos poucos, ou mesmo ocultadas.
Os resultados do ensaio clínico da fase 3 da Coronavac foram adiados novamente. Seriam divulgados nesta terça-feira, 15, e agora foram adiados para 23 de dezembro. Esse fato levanta a suspeita de que existe algum problema com a eficácia dessa vacina ou com o ensaio clínico conduzido pelo Instituto Butantã. Aqui, vou descrever os três cenários mais prováveis. Qualquer que seja a realidade, a falta de transparência dos responsáveis por essa vacina é um enorme desserviço para a população brasileira. E, espero, para a reputação dos envolvidos.
Quando o ensaio clínico de fase 3 da Coronavac foi iniciado, resultados foram prometidos para o dia 20 de outubro. Atrasou, mas em 24 de novembro o governo de São Paulo afirmou que havia 74 pessoas que contraíram covid-19 entre os participantes do estudo, o suficiente para fazer uma análise preliminar da eficácia. Isso porque o protocolo do estudo previa uma análise preliminar com 61 casos. Essa análise foi feita e seu resultado não foi divulgado.
Nesse meio tempo, o número de casos de covid-19 chegou a 170, superando os 151 necessários para considerar o estudo terminado. Novamente, os dados relativos a esses 170 casos não foram divulgados, mas prometidos para esta terça-feira, 15 de dezembro. Agora, a divulgação foi atrasada novamente.
Não divulgar por comunicado à imprensa um estudo da fase 3 com 170 casos confirmados é, no mínimo, estranho. A Pfizer terminou seu estudo e divulgou o resultado com aproximadamente 160 casos e o mesmo ocorreu com a AstraZeneca e a Moderna. Com esse número de casos, já é possível calcular qual a eficácia da vacina e sua segurança. Pfizer e Moderna, com esse número de casos, determinaram que a eficácia de suas vacinas é de 95% e a AstraZeneca, de 62%.
Como mostrei quando descrevi o estudo da Pfizer, essa conta é muito fácil de fazer e, para tanto, basta construir um gráfico semelhante aos publicados pela Pfizer e AstraZeneca que reproduzi aqui no Estadão. A questão, portanto, é a seguinte: como esses dados existem, por que o Instituto Butantã, que é o responsável pelo estudo, não fez sequer um comunicado à imprensa?
Uma possibilidade é que o estudo teve falhas graves na sua execução e os resultados obtidos até agora são inconclusivos. Essa é uma possibilidade real, pois sabemos que mesmo a AstraZeneca teve problemas na execução do seu estudo e a real eficácia de sua vacina ainda é desconhecida (sabemos que é maior que 62%).
Que se saiba, o Butantã nunca fez um estudo dessa importância em um tempo tão curto. Se esse é o caso, o Butantã e o governo do Estado deveriam descrever o problema, mostrar como pretendem sanar a deficiência e informar o prazo em que dados confiáveis serão obtidos.
A segunda possibilidade é que os resultados são claros e a conclusão é de que a vacina tem uma baixa eficácia. Se esse é o caso, beira um crime não divulgar esses resultados, simplesmente adiando ou tentando esconder os dados. Uma vacina que não funciona não é culpa nem de quem a desenvolveu nem de quem fez os testes. É uma realidade científica que não vai ser mudada por qualquer discurso político. E, quanto mais cedo soubermos se a vacina é ou não eficaz, mais rapidamente poderemos saber se vamos poder contar com ela nos planos de vacinação. Também é uma irresponsabilidade inacreditável o governo do Estado anunciar um plano de vacinação com datas se a vacina não funciona ou tem baixa eficácia.
A terceira hipótese é que o ensaio clínico de fase 3 foi bem executado, e o Instituto Butantã já sabe que a vacina funciona e tem alta eficácia. Mas, para fazer birra e prolongar a guerra com o governo federal, essa informação está sendo sonegada de modo que o governo federal não conte com a vacina no seu plano de vacinação e São Paulo saia na frente, capitalizando politicamente essa informação. Se for o caso, esse é o mais sujo uso político de uma vacina que se pode imaginar.
O fato é que nas três hipóteses é indesculpável não sabermos ainda o que está acontecendo com a Coronavac e se o País vai poder contar com ela nos seus planos de vacinação. Em todos esses cenários os cientistas do Butantã estão produzindo um enorme desserviço para o Brasil, simplesmente por se comportarem como políticos.
Finalmente, é preciso lembrar que até agora nenhuma das três empresas que poderiam fornecer vacinas ao País pediu a aprovação à Anvisa, e sem esse pedido formal todo esse barulho em volta da politização da Anvisa não faz o menor sentido. Quando os pedidos forem feitos, e caso a Anvisa não se comporte como é esperado dela, aí sim, as metralhadoras devem ser apontadas na sua direção.
Em conclusão, apesar de todo o barulho em volta dos planos de vacinação, nenhum plano pode ser concluído sem que se saiba de quais vacinas o Brasil dispõe para vacinar a população (hoje não temos nenhuma), a quantidade de doses disponível de cada vacina ao longo do tempo (tampouco um fato conhecido) e as condições de armazenamento e vida útil das vacinas a serem utilizadas.
Enquanto esses dados não estiverem disponíveis, um plano detalhado é um exercício de futurologia, importante de ser feito, mas somente um exercício de futurologia. E nesse quebra-cabeça a peça mais importante que falta é sabermos se vamos poder contar com a Coronavac. E, governador, em ciência não basta dizer que sim, é preciso mostrar os dados.
*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS
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