O governo brasileiro planeja criar, já no mês que vem, duas gigantescas áreas de preservação marinha, centradas nos dois pontos mais remotos de nossa fronteira oceânica. Uma ao redor do Arquipélago de São Pedro e São Paulo (ASPSP), a mais de mil quilômetros da costa do Rio Grande do Norte, e outra ao redor das ilhas de Trindade e Martin Vaz, a mais de mil quilômetros da costa do Espírito Santo. Cada uma delas com mais de 400 mil km2, ou duas vezes o tamanho do Estado do Paraná. Juntas, elas chegam a quase 900 mil km2, um área oceânica do tamanho do Estado de Mato Grosso.
Assim, numa canetada só (ou duas), o Brasil terá cumprido com folga a Meta de Aichi #11, acordo internacional que exige a proteção de pelos menos 10% "das áreas marinhas e costeiras" de cada país até 2020. Hoje, esse índice no Brasil é de apenas 1,5%; e com a criação dessas duas áreas ele saltaria para 25%.
As propostas de criação das unidades estão disponíveis no site do ICMBio, e as audiências públicas para discuti-las devem acontecer hoje no Recife e amanhã, em Vitória. Veja as propostas aqui: https://goo.gl/efS89F
Dúvidas
A princípio, a criação de áreas protegidas é sempre bem vinda por cientistas e ambientalistas -- ainda mais em ambientes marinhos, que são muito mais carentes de proteção no Brasil do que os ambientes terrestres.
Mas fica a dúvida: Até que ponto essas áreas serão efetivamente protegidas? O governo vai mesmo se comprometer com os recursos humanos, logísticos e financeiros necessários para garantir a segurança dessas áreas tão grandes e tão remotas? Ou elas serão mais dois "parques de papel", usados apenas para cumprir a Meta de Aichi e fazer bonito nos fóruns internacionais -- sem, na verdade, proporcionar qualquer camada adicional de proteção aos ecossistemas marinhos, além do que já existe hoje?
O blog conversou com pesquisadores e ambientalistas sobre isso. Todos são favoráveis à criação das áreas protegidas, mas com muitas ressalvas e preocupações relacionadas à implementação e efetividade delas.
Sobre atividades de pesca e mineração
As principais ameaças à conservação dessas áreas são as atividades de pesca e mineração submarina. E a principal dúvida que paira sobre as propostas do governo, portanto, é até que ponto essas atividades serão restringidas (ou não) dentro das unidades de conservação, uma vez criadas.
Ambas as propostas incluem um mosaico de áreas protegidas, formado por uma grande Área de Proteção Ambiental (APA) de mar aberto, extendendo-se até 200 milhas náuticas (370 km) de cada ilha ou arquipélago, e uma área menor, classificada como Monumento Natural (MONA), no entorno também de cada ilha ou arquipélago, com o intuito de proteger seus ecossistemas mais raros e sensíveis, como recifes, encostas e topos de montanhas submarinas.
As APAs são unidades classificadas como de "uso sustentável", em que atividades comerciais ou exploratórias não são automaticamente proibidas, mas têm de se enquadrar em regras de sustentabilidade, estipuladas num plano de manejo. (Toda a zona costeira do Estado de São Paulo, por exemplo, é coberta por APAs marinhas, com todas as ocupações e atividades comerciais que existem dentro delas.) A dúvida é: Quais serão essas regras; e como o governo planeja garantir o cumprimento delas, visto que o monitoramento da pesca, mesmo em regiões bem menores e mais próximas da costa, já é extremamente precário no País?
A áreas das APAS, nesse caso, correspondem exatamente à Zona Econômica Exclusiva (ZEE) do Brasil sobre esses territórios -- área sobre a qual o país tem soberania para explorar os recursos marinhos.
Já os MONAs são unidades de "proteção integral", com condições mais restritivas de uso. A lei não deixa explícito, porém, se atividades de impacto ambiental -- como pesca e mineração -- são obrigatoriamente proibidas nessas áreas, o que preocupa os cientistas. Segundo fontes ouvidas pelo blog, a proposta inicial elaborada por pesquisadores era que essas áreas fossem classificadas como Refúgio de Vida Silvestre (REVIS), para garantir sua proteção integral; mas essa proposta teria sido alterada para MONA (uma categoria mais flexível) sem o consentimento dos autores -- supostamente atendendo a interesses dos Ministérios da Defesa e de Minas e Energia.
Em Trindade, uma das atividades mais impactantes à biodiversidade local é justamente a pesca recreativa praticada pelos marinheiros que cuidam da base da Marinha na ilha. Em São Pedro e São Paulo, os navios comissionados pela Secirm para levar pesquisadores até o arquipélago pescam durante todo o tempo que ficam lá, aguardando para levá-los de volta.
"É sabido que as atividades pesqueiras que ocorrem no entorno destas ilhas já causaram sério declínio nas populações de tubarões, assim como a redução da população de outras espécies de peixes com alta relevância funcional no ambiente. Além disso, existe pressão na região para mineração marinha, sabendo-se da ocorrência de sulfetos polimetálicos no Arquipélago de São Pedro e São Paulo, e de nódulos polimetálicos e crostas cobaltíferas na região da Ilha da Trindade (Cadeia Vitória - Trindade), de alto valor econômico", diz um manifesto divulgado pelo coletivo Ouvidoria do Mar. O grupo ressalta a necessidade de se proibir atividades de mineração no entorno das ilhas, e de se definir um "prazo factível" para definição do plano de manejo das APAs.
Sobre a Meta de Aichi
Pesquisadores e ambientalistas também questionam a "ética" do uso dessas áreas para o cumprimento da Meta de Aichi, por conta das dúvidas sobre a capacidade do governo de protegê-las, e do fato de elas não abrangerem uma série de ambientes importantes para conservação, como os recifes de coral. Na sua maior parte, são áreas de oceano aberto.
"Qualquer pessoa que disser que essas reservas estão ajudando o Brasil a cumprir a meta está muito enganada", disse ao blog o pesquisador brasileiro Luiz Rocha, da Academia de Ciências da Califórnia, pouco antes de sair para mais uma expedição de pesquisa na região de Trindade. "Proteger um bloco de água azul que corresponde a 10% da área oceânica do Brasil é muito diferente de proteger 10% das áreas marinhas e costeiras (como exige a Meta de Aichi). O Brasil, no máximo, se aproximaria de proteger 10% de suas águas abertas, mas ainda estaria muito, muito longe de proteger 10% dos recifes de coral, 10% dos manguezais, 10% dos costões rochosos, 10% dos estuários, etc."
"Essa propaganda de que o Brasil atingirá os compromissos assumidos internacionalmente é falsa. A meta não é proteger simplesmente em termos de área e sim em termos de representatividade. O Brasil é rico em ecossistemas costeiros e marinhos, e todos eles devem estar devidamente protegidos", argumenta, também, a ecóloga Daniele Vila Nova, em conversa com o pesquisador Rafael Loyola, no site O Eco.
Procurado pela reportagem, o secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, José Pedro de Oliveira Costa, disse que a maior parte dos ecossistemas costeiros (incluindo recifes de coral e manguezais) já contam com taxas de proteção bem acima de 10% (dados do livro "Panorama da Conservação dos Ecossistemas Costeiros e Marinhos no Brasil", publicado pelo MMA - abaixo). "Portanto, fica evidente que o desafio maior no Brasil é proteger os ecossistemas marinhos, rasos e profundos, especialmente aqueles afastados da costa", afirma Zé Pedro, como é conhecido. Segundo ele, a mineração e a pesca comercial serão, sim, proibidas dentro das MONAs.
As propostas para proteção de São Pedro e São Paulo e Trindade "inovam na escala e, principalmente, na necessária e indispensável parceria com a Marinha do Brasil", diz o secretário. "E respondem a nosso compromisso internacional. Convenhamos, não é pouco", conclui Zé Pedro.
O monitoramento para proteção das áreas, segundo ele, será feito em colaboração com a Marinha, que já possui bases e atua regularmente nas duas áreas. O Ministério da Defesa apoia a criação das unidades.
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