Quase uma década e meia depois da estreia com o fenômeno Cidade de Deus, e após superar um duro bloqueio criativo, o carioca Paulo Lins finaliza o seu segundo livro, Desde Que o Samba É Samba
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Paulo Lins puxa uma revista do meio de uma pilha na estante e abre, sem nem precisar folhear, na página exata. "É verdade... Eu era muito diferente", diz, achando graça, ao rever a foto dele mesmo, meio magrelo, na edição amarelada de 1997, ano em que alvoroçou o mundo literário com seu romance de estreia, Cidade de Deus. Tinha então 39 anos - e pensar no tempo que isso faz o assusta. Ao longo de 14 anos, o autor viu o livro vender mais de 100 mil cópias no Brasil, virar um dos filmes nacionais mais bem-sucedidos no globo e sair em mais de 20 países - a conta ele perdeu, embora mantenha na estante traduções como a holandesa e a sueca e saiba que Estônia e Coreia do Sul estão na fila. Também deixou para trás a vida de professor, iniciou carreira de roteirista em produções como Cidade dos Homens e percorreu o mundo falando sobre o livro e o Brasil. Faltou conhecer o Oriente, resume, após desistir mais uma vez de contabilizar localidades.
E faltou um segundo romance. Cidade de Deus ganhou edição de bolso, retrabalhada e bem mais enxuta, em 2002, o ano do filme de Fernando Meirelles, mas depois não se viu nas livrarias outro título de Paulo Lins. Na época, ele falava sobre uma ficção iniciada para a Companhia das Letras, uma trama centrada num manicômio penitenciário e que tinha até título, O Plano de Marlon. Até que, em 2004, numa fase de grandes contratações, a Planeta apareceu com uma proposta irrecusável. "Ele chegou arrasado à minha sala. Disse que estava em situação difícil, que precisava aceitar", lembra Luiz Schwarcz, o primeiro editor, que deu a bênção para o autor pródigo deixar a casa. "Falei: "Paulo, quero o teu bem. Vai lá"." Paulo foi. E teve um enorme bloqueio criativo.
"Foi um bloqueio, uma parada, foi tudo de ruim", recorda o ficcionista ao receber com exclusividade o Sabático no apartamento em que vive há cerca de um ano, na Pompeia, em São Paulo. "Cidade de Deus fez muito sucesso e fiquei com medo de escrever outro romance. Me deu um "nossa!", sabe?. Todo mundo perguntava, ex-mulher perguntava, até aeromoça perguntava: "E o livro novo?" Teve uma hora que eu queria esquecer que tinha de fazer esse romance. Não queria esse peso nas costas."
Aos 52 anos, pai três vezes e solteiro de novo ("Não repito mãe pros meus filhos", graceja), o escritor mudou para a capital paulista para ficar perto do caçula, João, de 5 anos, que deixou o Rio com a mãe após a separação. Foi no pequeno aposento, quase nada mobiliado e com brinquedos cá e lá pelo chão, que encerrou a gestação lenta e sofrida de seu segundo romance. Desde que o Samba É Samba, feito, desfeito e refeito na última década, foi concluído em meados do último ano, aprovado pela editora e passa agora por minuciosa revisão. Paulo Lins, otimista (e feliz com a infinita paciência da casa que o acolheu), imagina que possa sair este semestre. Por via das dúvidas, a diretora editorial Soraia Luana Reis pôs para a segunda metade do ano no cronograma da Planeta.
A nova narrativa se passa entre os anos de 1928 e 1931, época em que surgia no cenário carioca a primeira escola de samba da cidade, a Deixa Falar. Um período em que portar pandeiro na rua podia até dar cadeia, narrado do ponto de vista de um malandro chamado Zé, frequentador da turma de Ismael Silva e da célebre Casa da Tia Ciata. Assim como Cidade de Deus, cuja história se passa no bairro em que o autor morou dos 7 aos 23 anos, Desde que o Samba É Samba transcorre em boa parte num reduto que lhe é caro - Estácio, berço do samba e do escritor, que ali viveu antes de mudar para o cenário do primeiro romance.
Mas Estácio não era um bairro entranhado na vida dele como Cidade de Deus. O romance de estreia demandou muita pesquisa oral e alguma histórica; para o novo, foi preciso inverter a lógica. A pilha de livros sobre a mesa de trabalho denuncia: Sérgio Cabral, José Ramos Tinhorão, Nei Lopes, todas as referências continuam ao lado do computador, à espera dos textos que voltam da revisão. O romance inclui temas pouco conhecidos, como a ação da máfia de cafetões judeus Zwi Migdal na Zona do Mangue carioca, e tabus, caso da homossexualidade de Ismael Silva - "Leve-me, lave-me, love-me", diz a certa altura o pai da Deixa Falar a um marmanjo, numa paquera imaginada pelo autor.
Poesia. Lins fala como os textos que escreve, intercalando histórias, detalhes e personagens, abrindo capítulos antes de retomar o tema. Questionado sobre a origem do novo livro, volta à infância, menciona o sonho de ser músico e a amizade com Marcelo Yuka, que rendeu versos noites adentro (e daí puxa um guardanapo com a letra de um samba em parceria, recém-encontrado dentro de um livro), retorna ao tempo em que cursava letras na UFRJ e ao livro de poesias do qual sente certa vergonha (Sobre o Sol, 1986), e de tudo isso se conclui que era uma ideia antiga e ponto final.
Naqueles tempos, na faculdade, favela não era assunto que interessasse muito. Nem a ele, que morava numa delas, nem à literatura, ao cinema ou à TV. "Foi a universidade que começou a olhar para o morro", avalia. Ele mesmo teve esse empurrãozinho. Integrante de uma geração pós-marginal, fã dos concretos, de linguística e de metalinguagem, só parou para pensar na vida ao redor quando a pesquisadora Alba Zaluar o convidou a participar de um estudo sobre a criminalidade na Cidade de Deus.
Foi daí que conheceu o crítico Roberto Schwarz, colega de Zaluar na Unicamp, entusiasta de primeira hora e hoje amigo. "Quando um autor encontra a forma adequada de inserir um universo novo na literatura, é um acontecimento. Ele não só trouxe à literatura um assunto novo como descobriu um jeito original de tratá-lo de dentro para fora", diz Schwarz, que leu trechos de Desde Que o Samba É Samba e se anima com a informação de que o romance está enfim para sair: "Não me diga, mas que maravilha".
Gírias. Ainda morando no Rio, Paulo Lins foi tanto ao Estácio fazer pesquisas para o novo livro que um bloco local, o Muvuca de São Carlos, fez do autor enredo neste carnaval. A convivência não supriu a busca por expressões de época que pudessem ser agregadas à ficção. Mesmo depoimentos de sambistas ao Museu da Imagem e do Som eram fontes limitadas, já que os entrevistados evitavam gírias. A solução foi recorrer com mais ênfase a um expediente usado em Cidade de Deus: inventar palavras. "É uma das coisas de que mais gosto. Tenho esse direito", diz, e abre um arquivo em Word. "Por exemplo, bolodochia. "Tem uns babacas que são assim, cheios de bolodochia". Ninguém fala isso, né?"
Está certo que o direito de inventar palavras quase levou o primeiro romance a não sair no mercado de língua inglesa. As dificuldades que o texto impunha à tradução fadou as duas primeiras tentativas ao fracasso. O projeto ficou na gaveta até 2004, quando caiu nas mãos da australiana radicada em Santos Alison Entrekin, que penou por dois anos. As barreiras eram acima de tudo culturais, já que "os países de língua inglesa conhecem a pobreza com outras feições", mas as linguísticas também causaram sufoco - caso de um simples "trampar", que tomou dias até a tradutora decifrar que a palavra era usada no sentido de vender, e não de trabalhar.
A demora na publicação nos EUA e na Inglaterra fez com que Cidade de Deus, o livro, chamasse menos atenção naqueles países do que em outros nos quais saiu no embalo do filme. Não foi grande perda para o escritor, que tem participação nos lucros do longa - uma cláusula no contrato estipulada pela Companhia das Letras e que, na época, fez o iniciante e nada otimista Fernando Meirelles especular: "Ok, a gente coloca essa cláusula, mas acho que não vai render nada...".
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