Se você ainda não viu o mais recente de Woody Allen, Meia Noite em Paris, talvez queira parar de ler estas mal traçadas por aqui mesmo. Quis escrever a respeito na estreia. Mas me segurei a fim de dar a você, querida leitora, a oportunidade de assistir sem saber como termina, nem como começa. Agora é tarde.A outra opção é guardar estas mal traçadas para depois do filme. Assim, você poderá comparar as suas impressões com as minhas. É apenas uma sugestão.Seja como for, você precisa vê-lo ao menos uma vez no cinema mesmo, antes de sair de cartaz. É delicioso. Não sei quantas oportunidades teremos no futuro próximo de sentir uma alegria cinematográfica tão intensa. Com honrosas exceções, o cinema me parece cada vez pior. Até seriado de televisão é mais interessante, na média, do que os filmes de hoje em dia. Torcemos pela internet.Meia Noite em Paris conta a história de Gil, um roteirista de Hollywood (Owen Wilson) que, cansado da mediocridade de sua profissão, passa a escrever um romance, uma tentativa de realizar uma obra de arte de verdade. Viaja para Paris com a noiva e os pais dela. Lá encontram um casal de amigos, dela também, com quem passeiam pela cidade das luzes, guiados pela primeira-dama da França (Carla Bruni, demais). O amigo da noiva americana é um professor universitário pedante e, portanto, chato. Nosso herói, que faz o papel de Woody Allen, se entedia e, ao escapar a pé por Paris, sozinho, tarde da noite, se perde e se encontra, sem querer, nos anos 20, junto aos grandes artistas que viveram na cidade daquela década.Dá-se logo de cara com Zelda Fitzgerald, mulher de Scott Fitzgerald, autor de O Grande Gatsby, em uma festa. Ao piano, Cole Porter, em pessoa, toca Let"s Fall in Love. Zelda é tudo que esperamos dela. Linda, espirituosa, cheia do faniquito da época. Diga o que disser do Woody, ele gosta das mulheres. Na sua cabeça, são umas criaturas fascinantes, complicadas, bonitas e amáveis.Zelda se entedia e sai para o bairro boêmio de Montmartre, levando Gil e Scott juntos. Encontram Ernest Hemingway, sozinho, no bar, a beber, claro. Zelda, como se sabe, não se dá com Hemingway, e sai, enquanto este tenta convencer Scott Fitzgerald a largar Zelda em nome da escrita.Nesse momento, eu quase tive um treco. Estava sozinho, fim da tarde, no último cinema grande de São Paulo, o da Sabesp, em Pinheiros, acompanhado de talvez 15 garotas da minha idade espalhadas pela plateia. Comecei a rir que nem um maníaco e não parei mais. A senhora sentada mais próxima de mim mudou de fileira.Gil e Hemingway acabam na lendária casa de Gertrude Stein e Alice B. Toklas (autora da primeira receita moderna de bolo de maconha) em Paris. Gertrude discute com Pablo Picasso seu novo quadro, um retrato da namorada do momento. Gil diz que é escritor. Stein, árbitra cultural da turma, aceita ler seu romance.Aquela época, naquela cidade, é pintada com carinho por Woody Allen. É um retrato engraçado (sequer falei dos surrealistas), cheio de piadas armadas a partir da viagem no tempo, uma caricatura e, ao mesmo tempo, um caldeirão de ideias e criatividade: o modernismo.Gil se apaixona pela belíssima e delicada namorada do Picasso e vice-versa. Ela quer viver em uma outra época, a belle époque, menos frenética e abstrata, anterior à Primeira Guerra Mundial. Acabam nela.Conhecem Toulouse-Lautrec, Degas e Gauguin (que dá em cima da moça). Ela fica por lá mesmo.Gil volta para os dias de hoje. Conhece uma jovem também linda, vendedora de discos antigos, com destaque para os de Cole Porter.O filme acaba bem. Mas diferente de todas as comédias românticas de Hollywood, sem casamento, graça ao nosso bom Deus. Tal como escreveu Luis Fernando Verissimo, na quinta-feira passada, aqui, no Caderno 2, não entendo a insistência romântica no ritual do casamento quando, como sabemos, metade deles acaba em brigas amargas e péssimas vibrações. Nesta comédia romântica, Gil separa-se da noiva e atravessa o Rio Sena na chuva com a jovem francesa vendedora de discos. Rumo ao futuro em Paris.Viva o Woody Allen. Que venha o filme de Roma. Torço muito para assistir, um dia, a um filme dele, desses de "cartões-postais", feito no Rio.