O protagonista da graphic novel Solitário (ed. Pipoca & Nanquim), do quadrinista francês Christophe Chabouté, é talvez o sujeito mais isolado da face da Terra: órfão, filho de um casal de faroleiros, ele morou a vida inteira em um farol cravado em um rochedo remoto no meio do oceano.

Além do distanciamento geográfico, seu corpo congenitamente deformado o afasta dos demais. Sem nunca ter posto os pés em um continente, tampouco navegado para longe do farol, ele passa seus dias lendo páginas aleatórias de um dicionário velho e empoeirado. Cada verbete lhe abre uma fresta para o mundo exterior, por meio da qual espia com sua imaginação. Às vezes, consegue vislumbrar com maior ou menor acurácia as descrições que o dicionário fornece.
Antes de mais nada, o faroleiro – ninguém é nomeado no quadrinho – é um misto de outros personagens clássicos da literatura francesa. É possível relacionar sua deficiência física a Quasimodo, o corcunda de Notre-Dame, do romance de 1831 de Victor Hugo; e sua inatingível tarefa intelectual de conhecer o mundo por meio de um dicionário aos escrivães Bouvard e Pecuchet, protagonistas de um romance inacabado de Gustave Flaubert que dedicam as vidas a ler livros e mais livros indefinidamente com o intuito de se tornarem sábios, mas não percebem que empreendem apenas uma busca por conhecimento enciclopédico, sem contato verdadeiro com o mundo.
A solidão do faroleiro é enunciada por meio dos traços finos de Chabouté, seus cenários marcados pelo intenso contraste entre preto e branco e painéis com angulações vertiginosas para quebrar a monotonia do ambiente marítimo. Uma das principais características de suas obras, a persistência de longos silêncios beckettianos reforça ainda mais a questão do exílio.
Em Solitário, o protagonista está apartado do mundo não apenas física como também culturalmente. Ele não tem valores em comum ou conceitos que possa compartilhar com o resto da humanidade. Guarda folhas, gravetos e objetos que a maré leva até seu rochedo. O quadrinho acompanha um jovem contratado como auxiliar de um marinheiro experiente, que leva semanalmente provisões ao farol devido a uma promessa feita ao finado pai do atual faroleiro. A cada entrega, o rapaz sente-se mais tentado a fazer contato com o morador do rochedo, quebrando sua incomunicabilidade, e é reprimido pelo dono do navio. No entanto, por meio de bilhetes deixados juntos às caixas, ele consegue romper a barreira de solidão do faroleiro.
Quando o marinheiro leva fotografias de diversos lugares do planeta para o faroleiro, ele finalmente compreende que não é possível ter experiências reais com a mediação de seu dicionário. Talvez esse seja um comentário de Chabouté sobre a maneira pela qual o ser humano vem relegando a experiência direta ao segundo plano em prol de novos meios de comunicação, sempre indiretos – não por acaso, a HQ foi originalmente publicada na França em 2008, época em que os smartphones começavam a se popularizar e as redes sociais ganhavam força. Por mais ferramentas que se tenha à disposição, a vivência empírica sempre será insubstituível.
O filósofo italiano Giorgio Agamben, em Infância e História (1978), anota que “todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer”. Para ele, é isso que torna insuportável o cotidiano e que diferencia o sujeito contemporâneo dos demais. Nas últimas quatro décadas, desde a publicação de seu ensaio, a humanidade criou instrumentos tecnológicos como anteparos contra a experiência direta para se enclausurar ainda mais. Bouvard e Pecuchet nunca alcançarão pleno conhecimento enquanto não saírem de seus cárceres autoinfligidos.
Em Solitário, Chabouté aponta para a solidão coletiva da modernidade e para uma retomada da experiência ao sugerir que é preciso que o faroleiro deixe seu rochedo para entrar em contato com o mundo.