Adriana Varejão coloca o dedo na ferida do colonialismo em exposição em Lisboa: ‘Crítica e amor’

A mostra ‘Entre os Vossos Dentes’ reúne quase 100 obras da artista plástica carioca e da pintora portuguesa Paula Rego e expõe conexões impressionantes entre elas. ‘A ética da minha obra sempre foi expor o que não é visto’, diz a brasileira

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Foto do author Julia Queiroz

LISBOA - A conexão entre Adriana Varejão (1964) e Paula Rego (1935-2022) é quase mística, ao menos é o que parece visitando a exposição Entre os Vossos Dentes, que acaba de ser aberta no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa, e escancara como a artista plástica carioca e a pintora luso-britânica, mesmo separadas por 29 anos e um oceano, têm obras profundamente interligadas.

Adriana nasceu no Rio de Janeiro no ano em que o regime militar se instaurou no Brasil. Cresceu em uma ditadura em um país fortemente influenciado pelo catolicismo. No início da vida artística, foi impactada pela arte barroca e passou a incorporar em suas obras temas envolvendo a colonização portuguesa e as violências históricas deixadas por ela no Brasil.

A artista plástica brasileira Adriana Varejão posa em frente à obra 'Azulejaria Verde em Carne Viva' (2000) na exposição 'Entre os Vossos Dentes', que abriu em 11 de abril de 2025 no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa. Foto: Patricia De Melo Moreira/AFP

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Paula Rego também nasceu e cresceu em uma ditadura, quando o regime Salazarista impôs o Estado Novo em Portugal - o país que trouxe o catolicismo ao Brasil. Fugindo do totalitarismo, foi estudar na Slade School of Fine Art em Londres, onde passou boa parte da vida. Preocupada com temas como violência de gênero e muito consciente daquela imposta pelo império português contra suas colônias, a artista é considerada uma das mais importantes pintoras portuguesas e um ícone do feminismo.

“Em toda a minha obra, desde o momento que eu a construí no final dos anos 1980, eu questionei narrativas hegemônicas. Desde o início, eu falava sobre a colonização. Questionava isso muito antes do discurso decolonial, especialmente nas artes plásticas”, diz Adriana ao Estadão. “Fazer uma exposição desse porte com uma artista enorme em Portugal é uma coisa muito forte e fundamental para mim, parece que eu estava me preparando há 30 anos para que isso acontecesse.”

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O contato com a obra de Paula Rego foi um ponto de virada para Adriana. Ela foi à uma grande exposição da artista em 2011, na Pinacoteca de São Paulo, e se surpreendeu com a conexão que encontrou com a própria obra. Mesmo que de lados distintos da história e com técnicas bastante diferentes, ambas tinham a violência colonial e o corpo feminino como foco.

A sugestão para que elaborassem uma mostra conjunta partiu da galerista Márcia Fontes, ciente do impacto das telas de Paula na carioca. A ideia foi colocada em prática primeiro em 2017, com uma pequena exposição na galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, no Rio. Em preparação à mostra, no ano anterior, Adriana viajou a Londres e conheceu Paula Rego pessoalmente em seu ateliê.

Adriana Varejão e Paula Rego no ateliê da portuguesa em Londres em 2016. Reprodução do catálogo da exposição 'Entre os Vossos Dentes', com imagens cedidas pela galeria Fortes D'Aloia e Gabriel. Foto: Julia Queiroz/Estadão

Na ocasião, a artista finalizava a obra O Céu Era Azul, o Mar Era Azul e o Menino Era Azul, uma das últimas a serem colocadas na exposição em Lisboa. “Ela me contou que o menino [retratado na tela] queria encontrar o pai, mas sofreu várias violências nesse caminho”, lembra Adriana. Na obra, o mar, o céu e o menino são azuis, enquanto a areia tem um tom amarelo. Adriana achou bonito. Então Paula explicou: o menino, na verdade, está morto. “O trabalho dela é interessante nesse sentido, porque ele sempre prega uma peça, sempre tem uma armadilha.”

Aquela mostra singela em 2017 foi o ponto de partida para esta que, agora muito mais expressiva, reúne quase 100 obras e inaugura o projeto de reforma do Centro de Arte Moderna Gulbenkian e uma série de trabalhos futuros envolvendo a relação entre Brasil e Portugal. Relação essa que perpassa toda a mostra e que ganha luz com as conexões entre Adriana e Paula.

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“Nem sempre essas aproximações são fáceis ou dóceis”, diz Victor Gorgulho, brasileiro curador da mostra ao lado da portuguesa Helena de Freitas e da própria Adriana. “Existe uma violência explícita ou implícita em diversos dos conjuntos que nós formamos, mas todas essas relações acabam por travar novas conversas entre Brasil e Portugal - que já estavam presentes, claro, individualmente na obra das duas, mas que por meio desse encontro tornam-se mais explosivas e evidentes.”

Adriana Varejão entre a sua obra 'Parede com Incisões à la Fontana' (2002) , à esquerda, e a tela 'Anjo' (1998), de Paula Rego, à direita. Os trabalhos fazem parte da exposição 'Entre os Vossos Dentes', que entrou em cartaz em 11 de abril no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa. Foto: Patricia De Melo Moreira/AFP

“Existe a crítica, mas existe uma relação de amor enorme também. Você vê a minha relação com a cerâmica do bordado, a referência da azulejaria. Existe essa herança que você ganha, mas ela também permite ser questionada”, completa Adriana. “É como voltar para a casa da minha vó. É um espaço de afeto, mas, ao mesmo tempo, de diferenças.”

A exposição

Foram dois anos de trabalho para selecionar, organizar e viabilizar o transporte das obras. Na exposição, elas foram organizadas em 13 salas em projeto expográfico da cineasta, dramaturga e cenógrafa Daniela Thomas (que foi, aliás, produtora associada de Ainda Estou Aqui). “O espaço tem pouca preocupação formal e muita preocupação conceitual, a servir as histórias que estão sendo contadas”, explica ela.

A expografia da exposição 'Paula Rego e Adriana Varejão: Entre os Vossos Dentes' foi realizada por Daniela Thomas. A mostra abriu na sexta, 11, no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa. Foto: Fundação Calouste Gulbenkian/Divulgação

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As galerias foram divididas de forma quase labiríntica, com fendas que permitem que você “espie” a sala ao lado. “Na obra da Paula Rego, todas as cenas que você vê, você não deveria estar vendo. São cenas que deveriam estar sendo vistas pela fresta da porta, são de uma intimidade insuportável. E a Adriana ela cria frestas, ela rasga a pintura, a escultura. Tentei traduzir esses dois gestos distintos com essas fendas”, completa Daniela.

Esta também foi a primeira vez em que Adriana atuou como curadora. Foi ela quem elaborou os nomes salas e muito dos textos expostos ao longo delas. “É uma exposição muito autoral para além das obras”, destaca. A primeira pintura em evidência, em sala batizada de Fui Terra, Fui Ventre, Fui Vela Rasgada, é a tela A Primeira Missa no Brasil (1993), na qual Paula Rego faz uma reinterpretação de um quadro muito famoso de 1860 de Victor Meirelles, acrescentando ao retrato uma mulher grávida em evidente sofrimento.

Adriana Varejão entre as obras 'A Primeira Missa no Brasil' (Paula Rego, 1993), à esquerda, e 'Filho Bastardo II' (Adriana Varejão, 1997), à direita, na exposição 'Entre os Vossos Dentes', em Lisboa, em 11 de abril de 2025. Foto: Artur Miranda Machado/Fundação Calouste Gulbenkian

Ao lado dela, em cada uma das paredes, estão duas obras de Adriana: Mapa de Lopo Homem (1992), uma paródia de um mapa de 1516 marcada por uma grande ferida no centro, e Filho Bastardo II (1997), na qual Adriana representa personagens e móveis de aquarelas do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) - que viveu no Brasil durante o período colonial e retratou a época em seu trabalho -, mas subverbete a imagem ao colocá-los no contexto da violência do período colonial também com uma grande ferida no meio.

“São obras praticamente contemporâneas, mas nos anos 1990 eu não olhava para a obra da Paula e ela provavelmente não olhava a minha”, explica Adriana. Essas felizes coincidências aparecem em todas as salas. Em uma das galerias mais fortes da mostra, chamada de Extirpações, Paula e Adriana tratam do aborto - de um lado, uma série da década de 1990 em que Paula retrata mulheres, aparentemente, prestes a consumarem o ato. De outro, vemos algumas das obras mais impressionantes de Adriana, como Azulejaria Verde em Carne Viva (2000) e Extirpação do Mal por Incisura (1994).

'Azulejaria Verde em Carne Viva' (2000) e 'Extirpação do Mal por Incisura' (1994), de Adriana Varejão, na exposição 'Entre os Vossos Dentes', que abriu em 11 de abril de 2025 no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em Lisboa. Foto: Fundação Calouste Gulbenkian/Divulgação

O feminismo, no qual Paula foi pioneira, também é caro a Adriana. Essa relação se aflorou nos últimos dias quando a brasileira precisou lidar com uma grande perda, a de sua sogra, Heloisa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda), que morreu aos 85 anos há poucos dias, no Rio de Janeiro. Imortal da Academia Brasileira de Letras, ela era um dos nomes mais importantes do feminismo brasileiro.

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“Minha sogra era uma das maiores pensadoras do feminismo no Brasil. E uma coisa que me movia muito no pensamento da Paula era isso também”, diz. “Uma amiga minha falou uma coisa muito bonita: nasce uma ancestral. Eu achei isso muito legal. Tive essa sensação na morte da Paula [em 2022] também. Nasceu uma artista ali com um legado incrível.”

Segundo Victor Gorgulho, existia um desejo da curadoria de selecionar obras de Paula que, além de dialogarem com o trabalho de Adriana, apresentassem telas da portuguesa menos conhecidas do grande público. Já Adriana, que já havia feito duas exposições menores em Lisboa em 2005 e 1998, tem obras de quase todas as fases de sua carreira em exibição.

Esta é uma de três exposições que a brasileira fará no exterior. Ela está em cartaz no Hispanic Society Museum & Library (HSM&L), em Nova York, até 22 de junho, com novas obras da série Pratos, e inaugura em 15 de maio uma mostra na galeria Gagosian, em Atenas, Grécia, com itens que abordam diferentes tradições da cerâmica.

É um momento especial, que celebra quase quatro décadas de experiência nas artes e coroa os 60 anos completados em 2024. Mas, para Adriana, a principal preocupação de seu trabalho é a mesma: questionar verdades hegemônicas que foram herdadas historicamente.

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“Sempre tentei criar novas versões para isso, expor o que normalmente não é visto, o que é apagado. A minha preocupação sempre foi essa. A ética da minha obra sempre foi essa. De maneiras diferentes, soluções estéticas diferentes, mas esse é o grande eixo que norteia o meu trabalho, desde sempre. Isso não mudou em mim”, afirma.

Paula Rego e Adriana Varejão: Entre os Vossos Dentes

  • Lisboa – Centro de Arte Moderna Gulbenkian (Rua Marquês de Fronteira, 2 (São Sebastião)
  • 10 de abril a 22 de setembro
  • Qua-Seg 10h às 18h /Sáb 10h às 21h
  • 8€/14€

*A repórter viajou a convite da Fundação Calouste Gulbenkian