Eles tinham temperamentos distintos - antagônicos mesmo. Mas isso não os impediu de comandar, lado a lado, a nação mais poderosa do planeta em um momento-chave de sua história. Richard Nixon (1913- 1994), presidente da República, e seu braço direito, Henry Kissinger (1923) - cuja enorme influência como assessor de Segurança Nacional e secretário de Estado o transformou em uma espécie de copresidente - ocuparam a Casa Branca entre 1969 e 1974. Até que o escândalo de Watergate forçasse a renúncia de Nixon, ele e Kissinger tomaram, juntos, medidas que tanto mantiveram os Estados Unidos na Guerra do Vietnã - a despeito das forças contrárias a isso -, como emprestaram seu apoio decisivo para a derrubada de Salvador Allende da presidência do Chile. Ao mesmo tempo, promoveram a distensão no relacionamento com a União Soviética e a aproximação com a China. Esta foi a faceta pública da dupla. Na intimidade, porém, ambos alimentaram intrigas mútuas, fruto de ambições iguais - portanto, alvo de disputas, de conflitos. Leia trechos do livro de Dallek e ouça partes da ópera Nixon in China Instigado pela velada concorrência que marcou tal parceria, o historiador norte-americano Robert Dallek pesquisou durante três anos as mais de 23 mil páginas de documentos disponíveis relacionados ao tema. O resultado está no volumoso Nixon e Kissinger (tradução de Bárbara Duarte, 750 páginas, R$ 89), lançado no Brasil pela Jorge Zahar Editor. "Cada um construiu uma fachada para, conscientemente ou não, disfarçar suas verdadeiras intenções", comentou Dallek em conversa, por telefone, desde Washington, com o Estado. "Ambos desejavam o poder desde jovem e, depois de avançarem diversos postos, viram-se lado a lado como importantes aliados." Eleito presidente depois de uma primeira tentativa frustrada (perdeu por uma pequena margem para John Kennedy, em 1960), Nixon vislumbrava estabelecer-se como estadista, um político preparado como nenhum outro para enfrentar as questões prementes da política externa dos EUA, em uma época de tensão contínua para o mundo, marcada pela Guerra Fria com a URSS. Tal objetivo se associava, de algum modo, com os propósitos de Kissinger, judeu refugiado da 2ª Guerra e decidido a impor a qualquer custo o seu valor - reconhecido desde os tempos de estudante na Universidade Harvard, onde era visto como gênio, uma combinação de Kant e Spinoza. Notadamente interessado na natureza do sistema político internacional do século 20, Kissinger sempre acreditou que o destino de um país não era completamente moldado por circunstâncias externas mas sim pelos escopos e escolhas feitos por seus estadistas. O que os uniu foi a amizade comum com Nelson Rockefeller, assessor especial do presidente Dwight Eisenhower (1953-61). Kissinger o conhecia desde 1955 e foi por ele convidado a trabalhar em uma pesquisa sobre as Perspectivas para os Estados Unidos. Começava ali a série de colaborações que despertaram a atenção de Nixon, que decidiu convidar Kissinger para integrar seu governo. Era o início de uma relação que incluiu, para além do trabalho conjunto, intrigas, traições, blasfêmias - e muitos palavrões. As repetidas tentativas de mostrar brilhantismo em cada ato estão entre as características mais marcantes da vida e da arte de exercer o poder praticada por ambos. "Eles cultivaram um casamento político, ainda que Kissinger considerasse Nixon um homem esquisito e desagradável, enquanto o presidente tratasse seu auxiliar pejorativamente de ?o meu judeu?", conta Dallek, na entrevista a seguir. Como homens com tão pouco em comum conseguiram conviver tão proximamente e por tanto tempo? Eles eram extremamente ambiciosos, dependentes de um grau de sucesso só desfrutado no alto poder. Também compartilhavam de algumas opiniões semelhantes, especialmente sobre política externa - ainda candidato à presidência, Nixon ficou atraído pelas críticas feitas por Kissinger, então apenas um professor universitário, à política de defesa dos governos anteriores, de Kennedy e Johnson. Juntos, podemos dizer que tiveram um casamento político. É possível afirmar que um era mais brilhante que o outro? Creio que Nixon era muito inteligente, especialmente para avaliar as habilidades políticas de Kissinger - este era muito astuto na análise da situação internacional. Juntos, tomaram algumas medidas satisfatórias, mas que ficaram ofuscadas pelo escândalo de Watergate. De que modo eles conseguiram evitar que os conflitos pessoais interferissem em seu governo? Eles faziam o possível. Nixon queixava-se muito de Kissinger, especialmente em seu diário, no qual expressava sua hostilidade. Veja o projeto de reabrir o mercado chinês: Kissinger sabia que, com isso, estava roubando os holofotes de Nixon, e que deixava o presidente ressentido. E ele ficava mesmo. Em dezembro de 1972, quando a revista Time colocou uma foto dos dois em sua capa, Nixon ficou incomodado pois Kissinger, na época, era tão somente seu consultor para segurança nacional. Ele só seria nomeado secretário de Estado em setembro de 1973, 11 meses antes da renúncia de Nixon. Por outro lado, Kissinger sempre foi um homem de boas maneiras, cultivando ótimas relações com a imprensa, tornando-se mundialmente conhecido, o que frustrava e irritava Nixon. O senhor diria que eles eram mais propensos à paz ou à guerra? Para os dois. A favor da paz até o momento em que uma turbulência internacional tornava imperiosa uma ação americana. Nos momentos pacíficos, eles sentiram a necessidade de estabelecer uma nova relação com a China, além de tratar da relação com a União Soviética no que dizia respeito às armas nucleares. Mas não podemos esquecer que também não encerraram a Guerra do Vietnã, como prometido em campanha, bombardeando também o Camboja e provocando a morte de 23 mil soldados americanos. Creio que poderiam ter dado fim ao conflito em 1969 mas, como julgavam que isso não seria feito em condições honrosas para os Estados Unidos, decidiram adiar. Também participaram ativamente do golpe que provocou a queda e a morte do presidente chileno Salvador Allende, em 1973. Não mandaram matá-lo, mas sabiam dos detalhes. Farpas "Há momentos em que Henry Kissinger precisa de um puxão de orelhas. Por que às vezes Henry começa a achar que é o presidente" "Em outras oportunidades, é preciso mimá-lo e tratá-lo como uma criança" "É difícil suportar a tendência de Kissinger de construir sua imagem como a autoridade por trás do trono" RICHARD NIXON "Nixon era um homem solitário, que se isolava em seu escritório estirado em uma cadeira, escrevendo notas em um caderno amarelo" "Era muito esquisito e desagradável. Nunca entendi por que entrou para a política" "A política era uma forma de terapia ocupacional para Nixon. Mas ele pagou um preço terrível por essa presunção" HENRY KISSINGER