Diego Armando Maradona havia jurado para suas filhas que nunca mais falaria (mal) de Pelé, mas, como ele diz: ''É mais forte do que eu.'' Numa cena de Maradona By Kusturica, exibido ontem pela manhã para a imprensa aqui no 61º Festival de Cinema, depois de falar francamente sobre a sua dependência de cocaína, ele lamenta o fato somente porque poderia ter sido um jogador muito maior. Na coletiva, após a projeção, Maradona, de 47 anos, disse o que parecia uma bravata - se não fosse a cocaína, não haveria nenhum segundo maior jogador do mundo, nem Pelé. Maradona também bate forte em João Havelange, dizendo, em tom apocalíptico, que Deus é justo, porque nos 20 anos em que o dirigente a quem chama de ''mafioso'' dirigiu a Fifa, o Brasil nunca foi campeão mundial. Mas Maradona também presta tributo a Ronaldinho Gaúcho - pede que os barcelonenses parem de criticar o jogador e que o clube o mantenha no time, porque senão ele vai para o Milan e o Barcelona vai se arrepender amargamente. Maradona By (por) Kusturica não é, nem de longe, um documentário tradicional. Não poderia ser. São duas personalidades grandes demais para caber dentro daquilo que se chama de ''normalidade''. Logo na abertura, o próprio diretor sérvio Emir Kusturica empunha a guitarra durante um show de sua banda em Buenos Aires. O teatro quase vem abaixo quando o apresentador anuncia ''o Diego Armando Maradona do cinema''. E o que dizer do jogador? Maradona costuma ser comparado a... Deus. Um jornalista português, torcedor do Benfica, disse que agora estava convencido da existência de Deus porque acabara de vê-lo (e estava falando com ele). Em Buenos Aires, há um culto tão grande que inclui uma igreja - maradonense -, na qual os devotos de São Maradona se batizam e casam e as crianças rezam ''a maradona que estás en el cielo''. Ninguém é louco de cobrar objetividade a duas figuras ''maiores do que a vida'' como estas. Ou você entra no clima de celebração dionisíaca de Maradona By Kusturica ou vai terminar achando que aqueles 90 minutos de cinema são, simplesmente, o caos. A idéia do caos, por sinal , é recorrente no discurso do diretor, que cita Dionísio justamente porque ele introduz uma ordem - dos sentidos, dos prazeres - na desordem do mundo. Ambos se descobriram almas gêmeas. E usam o cinema para fazer o que não deixa de ser um manifesto político. Maradona ataca George W. Bush, Margaret Thatcher, o príncipe Charles e Ronald Reagan por meio de animações nas quais os poderosos do mundo terminam invariavelmente driblados para que o astro do futebol possa fazer seus golaços. Kusturica confirma que Maradona e ele estão dando voz aos que não podem manifestá-la, estão dizendo o que é voz comum, O jogador diz que recebeu dois convites para homenagens - um dos EUA e outro, de Cuba. ''Aos EUA, não vou. Prefiro Fidel (Castro).'' Para prová-lo, ele exibe seu corpo cheio de tatuagens - uma com a cara de Fidel, na perna, outra, do Che, no braço, e ainda a inscrição ''Argentina''. O culto pode parecer excessivo e até discutível - Maradona é mesmo o maior do mundo? Kusturica não tem dúvida. O único outro jogador que lhe interessa é Zidane. Nem ele nem Maradona têm muito respeito pelas escolhas do homem Édson Arantes do Nascimento, mesmo que Pelé tenha sido aclamado como o atleta do século. Pela quantidade de aplausos no Grand Théâtre Lumière e na coletiva, o público de Cannes também não. Kusturica divide a história do futebol em antes e depois do gol de Maradona contra a Inglaterra - repetido várias vezes durante o filme -, com o qual o jogador massacrou os ingleses e devolveu, no seu território, o gramado, todo o horror ocorrido nas Malvinas. Bush é o grande vilão de Maradona. Não apenas Fidel e o Che, mas também Hugo Chávez e Ivo Morales são seus ídolos, motivos mais do que suficientes para, ao debate futebolístico, se some o ideológico para desacreditar a ambos, Maradona e Kusturica. Na verdade, como Flaubert em relação a M. Bovary, Kusturica também assume que Maradona é ele. Senão ele, realmente, algum de seus personagens. Diversas cenas traçam paralelos entre a vida de Maradona - que Kusturica define como ''Sex Pistols do futebol'' - e os personagens de Onde Andará Dolly Bell?, O Ano em Que Papai Viajou a Negócios e Gato Branco Gato Negro. Kusturica cita este último para dizer que o maior inimigo de Maradona foi sempre ele mesmo, mas, felizmente, sobreviveu para contar sua história.